LEITURAS DE CLARICE LISPECTOR III
Tive um sonho nítido inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo. Mas o meu reflexo não estava no espelho, mas reflectia uma outra pessoa que não eu.
Por causa desse sonho é que inventei Ângela como meu reflexo? Tudo é real, mas se move va-ga-ro-sa-men-te em câmara lenta. Ou pula de um tema para o outro, desconexo. Se me desenraízo fico de raiz, exposta ao vento e à chuva. Friável. E não como o granito azulado e pedra de Iansã sem fenda nem frincha. Ângela por enquanto tem uma tarja sobre o rosto que lhe esconde a identidade.
À medida que ela for falando vai tirando a tarja – até ao rosto nu. Sua cara fala rude e expressiva. Antes de desvendá-la lavarei os ares com a chuva e amaciarei o terreno para a lavoura.
Vou evitar afundar o redemoinho de seu rio de ouro líquido com reflexos de esmeraldas. Sua lama é avermelhada. Ângela é uma estátua que grita e esvoaça em torno das copas das árvores. Seu mundo é apenas tão irreal como a vida de quem porventura me lesse.
(…)
Clarice Lispector “Um sopro de vida”, pág., 27, 1.ª edição - Companhia das Letras, janeiro de 2025

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