Chá com Letras Online: No teu Deserto -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXXII



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXXII
162.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


No teu Deserto
Capítulo VI
Sim, eu reparei que porta da casa de banho estava semiaberta. Tentei fechá-la, mas ela não encostava à ombreira, ficavam dois palmos de espaço através dos quais eu via o quarto e via-te a ti deitado, vestido, sobre a cama. Para me despir e chegar até à banheira, tinha de atravessar esse espaço aberto através do qual também tu me podias ver. Despi-me, a água quente já me esperava na banheira e Deus sabe como aquele banho me apetecia! Passei a perna por cima da borda para mergulhar o pé e experimentar a temperatura da água. Ainda me ocorreu entrar lá para dentro de costas voltadas para a porta, mas depois, e como se fosse a coisa mais natural do mundo, virei-me, sim, de frente, completamente nua, e entrei na banheira. Ao entrar, olhei para o quarto e vi-te a olhar para mim. Foram apenas uns segundos e soube-me bem, não sei explicar porquê – talvez vaidade, talvez porque me sentisse íntima de ti e esse teu olhar não tivesse nada de estranho ou de maldade, talvez apenas porque eu queria que tu me visses e queria ver-te a olhar-me.
Com esse teu olhar arrogante que às vezes me irrita tanto, tinhas-me dito, assim que entrámos na Argélia:
- Quando falarem contigo, fica ao pé de mim, porque tu não deves perceber palavra de francês. A tua geração não fala francês.
Por acaso, eu falava mal francês, só o pouco que me lembrava do liceu. E também queria ficar ao pé de ti, excepto quando me irritavas. Havia qualquer coisa em ti que me irritava e me atraía, ao mesmo tempo. Quando eras doce e querido, ou quando essa tua loucura latente ou essa tua alegria escondida vinham ao de cima, eu queria ficar ao pé de ti, porque me davas segurança e simultaneamente sentia que devia também proteger-te. Havia um conforto e uma paz ao teu lado que eu não sentia há muito tempo, muito tempo, e que agora ia sentindo, aos poucos, a tomar conta de mim, como uma coisa antiga e segura, perdida lá longe, algures noutras guerras. Mas quando tu ficavas irritado e irritante, quando não querias ouvir as opiniões de ninguém e só sabias dar ordens e esperar que eu e todos à volta ficássemos esmagados pelo teu brilho e clarividência, aí eu afastava-me. Magoada contigo e irritada comigo por me deixar sentir assim magoada por ti. Eu ainda mal te conhecia!
(…)
TAVARES, Migue Sousa – No teu deserto: quase um romance. Alfragide: Oficina do Livro, 2009. ISBN 978-989-555-464-5. Págs. 57 /58



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