Chá com Letras Online: NO TEU DESERTO -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXXI



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXXI
161.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


NO TEU DESERTO
Capítulo V
Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum, excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos – e esse é assustador. Será assim a morte, também, Cláudia?
Quando um de nós ficava parado a contemplar o deserto, o outro não dizia nada. Tudo o que se pudesse dizer, naquelas alturas, ali, em frente ao nada ou ao absoluto, seria tão inútil que só poderia vir de uma alma fútil. Tudo o que se diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos. No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega e impõe o silêncio. Mas, naqueles dias, eu estava sempre com pressa. Alguém tinha de estar sempre com pressa e coubera-me a mim, por função. Só não tinha pressa à noite, depois de montado o acampamento, cozinhado o jantar, revisto e arrumado o jipe e de ter passado para um caderno as notas do trabalho do dia e quando, enfim, me sentava com os outros à lareira a olhar as estrelas do Sahara.
Um dia, porém, depois de mais uma paragem para colher imagens, ao regressar ao jipe vi que tinhas ficado ao lado da pista, a olhar em frente, como se te tivesses desligado de tudo. Ia gritar-te, buzinar-te, quando qualquer coisa na maneira como tu estavas em pé a olhar o deserto, qualquer coisa na maneira como tinhas as mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça ligeiramente inclinada de lado, o cabelo varrido pelo vento, me fez ficar quieto ao volante. E fiquei assim a observar-te até que tu te virasses e visses que estava à tua espera. Aprendi que é preciso dar tempo aos outros para olharem. Se não fosse para isso, porque teríamos nós vindo ao deserto?
(…)
TAVARES, Migue Sousa – No teu deserto: quase um romance. Alfragide: Oficina do Livro, 2009. ISBN 978-989-555-464-5. Págs. 49 /50



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