LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXVII
156.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
21 de fevereiro
O Iraque. O Iraque foi um único dos 197 países do mundo onde o Zé Megre não teve tempo de ir para poder chegar ao céu gabando-se de ter conhecido a terra inteira. Morreu hoje de manhã, seguindo viagem para o Planeta Branco, onde descansam todos os que viveram e viajaram demais.
Por ironia do destino, eu estava no Alentejo quando, à noite, me chegou a notícia da sua morte, e tinha acabado de atolar um jipe num lameiro, escondido sobre a erva nascente, durante um passeio pelo campo. Quando olhei o jipe, irremediavelmente preso na lama, percebi logo que só sairia dali com um tractor, e pensei para comigo: “O que diria o Zé Megre se me visse assim atolado?” Olha, Zé, não vou poder ir ao teu enterro amanhã de manhã porque só arranjei tractor para o meio-dia. Mas seguramente que vais perceber a razão e, aliás, sabes como eu odeio os enterros daqueles de quem verdadeiramente gosto, como odeio ver amigos fechados num caixão, sem poder falar nem estender a mão, sem poderem prometer que estão apenas a dormir e logo voltarão.
Eu, e toda uma geração comigo, devo ao Zé Megre e ao Pedro Villas-Boas a descoberta do TT, a qual, por sua vez implicou a descoberta de cada metro quadrado de Portugal e vinte e cinco anos de prazer que os vulgares automobilistas de alcatrão nem sonham poder existir. Dos vinte e três ou vinte e quatro Transportugal organizados pelo Zé Megre, acho que devo ter feito talvez uns vinte, e só parei quando ele adoeceu há cerca de ano e meio, porque não imaginei um Transportugal sem ver o Zé Megre e o seu chapéu de cowboy à partida de cada etapa e sem se sentar para conversarmos e fumarmos à noite, ao jantar, ouvindo-o contar a história da última viagem e do último país por ele desbravado. Como a fabulosa história da sua viagem à Coreia do Norte, sozinho e acabando a dançar um slow com uma petrificada guia turística, que olhava à roda com terror de ser vista a dançar uma música decadente com um “estrangeiro contra-revolucionário”. No tempo da extinta Grande Reportagem, de que fui director, gastei dias e dias a pôr em prosa que se lesse as histórias de viagem do Zé, porque ele era tão bom viajante, fotógrafo e contador de histórias como era um desastre na escrita.
O Zé Megre foi um bom amigo, generoso e eternamente entusiasmado com a vida. Foi um aventureiro e um cavalheiro. Um dos raríssimos portugueses onde podíamos ainda adivinhar a herança genética daqueles loucos das caravelas, cujos genes parecem ter-se perdido algures para sempre. Dizem que ninguém é insubstituível, mas Zé Megre é. Não há outro como ele. Se não fosse o Bush, até tinha ido ao Iraque! E lá, onde está agora, se bem o conheço, não descansará enquanto não for a todos os planetas estrelas da galáxia. Sempre de chapéu de cowboy e cigarro na boca. Tal qual o Lucky Luke porque só o desinquietava a própria sombra.
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA – “21 de Fevereiro”, págs. 87/89, 2001, Clube do Autor
Comentários
Enviar um comentário