Chá com Letras Online: INVERNO -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXIV



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXIV
153.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


INVERNO
25 de Janeiro
Em Sagres, a caçar tarambolas, no dia mais ventoso do ano e no local mais ventoso a Europa. Toda a manhã encolhido atrás de um abrigo provisório, em pleno descampado, sob um frio de gelar mortos. E tarambolas, nem vê-las – aliás, até os pássaros tinham desistido de voar. Arrumei a espingarda e o resto, e fui até à Fortaleza – cuja “intervenção” arquitectónica me valeu, há uns anos, a única condenação por crime de abuso de liberdade de imprensa, quando não pude reprimir a indignação pelo que então vi. Agora, está bem pior: parece um souk argelino. Os edifícios novos, verdadeiro atentado àquela paisagem e àquela memória, mostram, com o passar dos anos e o vento salgado de Sagres, a sua absurda inutilidade e a sua devastadora fealdade. E o cimento com que decidiram cobrir as pedras seculares da própria Fortaleza começou a desbotar e a abrir remendos, como um rosto marcado por bexigas. Restos de lixo, restos de obras, janelas estragadas compõem o resto de cenário. E ainda se paga bilhete para entrar! Que o Infante lhes perdoe, que eles verdadeiramente não sabem o que fazem.
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA – “25 de Janeiro”, págs. 80/81, 2001, Clube do Autor



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