Chá com Letras Online: DESENCONTROS -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXV



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXV
154.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal

DESENCONTROS
Chegamos sempre tarde demais para os homens, cedo demais para os deuses.
Heidegger
Fina Flor do Oriente: cheirava a pimenta branca, a canela, a madeira de sândalo. Havia uma loja de um chinês com trinta variedades de diferentes de especiarias, dispostas em pequenas pirâmides coloridas, numa janela aberta sobre a rua que fazia as vezes de montra. Cheirava a mil cheiros do Oriente e eu caminhava ausente, como se caminha no interior do sono, vozes chamavam por mim numa língua estranha e os seus olhos não sei se sorriam, se ameaçavam.
Saí das ruas estreitas do bairro chinês, do seu jogo de sombras e luzes e da sua frescura. Nas avenidas largas circulava um trânsito intenso e possesso, buzinas, gritos, insultos, um cheiro a gasolina queimada, um céu pesado, espesso e húmido, que me escorria em gotas ininterruptas pelo cabelo, pela nuca, pelos ombros, pelas costas abaixo. Vagueei, arrastado pela multidão até avistar a frontaria do Hotel Oriental. Atravessei o lobby, atulhado de sofás de veludo, malas de couro Louis Vuitton espalhadas pelo chão, mulheres tailandesas deslumbrantes, esperando sentadas pelos cavalheiros do American Express, e algumas olharam-me como se olha um náufrago de alguma obscena tragédia. Sentei-me numa das cadeiras de verga do célebre terraço do Oriental, onde os ruídos da cidade e do rio só chegam esbatidos e a luz filtrada pelo jardim de juncos e canas e, como outros, tantos outros antes de mim, deixei-me tomar por esse torpor de Oriente.
Pensei em F., na sua beleza frontal e sem subtilezas, sólida certeza de mulher do Ocidente. Diz-se que, de quando em quando, F. atraiçoa o marido, discreta mas empenhadamente. Parece-me verdade, isto: há sinais que não enganam. E, hoje à noite, F. vai estar sozinha, o marido vai dormir num aldeamento turístico fora da cidade, cuja compra anda a negociar. Pergunto-me se valerá a pena: penso nas suas pernas compridas, o peito amplo, os olhos rasgados, a sua boca grande. Certamente que ela não quererá mais do que eu próprio quero, falta-me descobrir a consistência da sua pele, agarrá-la pelos cabelos, andar à roda como uma ventoinha suspensa do tecto no quarto do hotel, o corpo húmido de F. sobre o lençol de seda do Sião, e depois sair furtivamente, como um ladrão nocturno. Valerá a pena? Remorsos, sim, é verdade, às vezes tenho remorosos. Vejo-me em sonhos como um pássaro negro, crepuscular, alimentando-se nas sombras, nos desperdícios, nos destroços, das vidas alheias. Mas, afinal, o que se leva da vida, senão remorsos? Remorsos do que podia ter sido e não foi e do que se perdeu depois de ter sido. Remorsos do que devia ter sido dito e feito e não foi a tempo ou do que foi demasiado dito e feito. Remorsos desses eternos desencontros, desta sensação de que nada existe no seu tempo certo, de chegar sempre tarde ou de partir cedo demais. Porque será que a seguir à noite vem sempre a manhã e de manhã pesa sempre nos olhos e na alma o que se fez e desfez de noite – um corpo húmido deixado num lençol de seda e o ladrão furtivo desse corpo abandonando o quarto que não é seu, em direcção ao vazio de tudo o que lhe pertence, inutilmente?
- Another gin tonic, Sir? – O empregado estava ali, plantado, a olhar para mim. Decerto já tinha feito a pergunta duas ou três vezes, até conseguir que eu reparasse nele. Decerto conhecia já de há muito esta lassidão dos hóspedes sentados no terraço do Oriental: há sempre qualquer coisa que lhes parece faltar e ele sabe-o. Talvez queira mais qualquer coisa, Sir, diz-me ele. E um olhar cúmplice trata de me sugerir o que, manifestamente, lhe parece que me está a fazer falta: “Maybe you want a lady tonigth, sir?”
Ah, sim, Banguecoque, a cidade das ladies tonigth! Não, rapaz, não podes fazer nada por mim. A lady que eu talvez queira esta noite, nem tu nem ninguém, nem ela própria, me pode oferecer: só a minha capacidade de esquecimento. E não gosto que me tentem ler os pensamentos: pois tu não vês que eu estou aqui só a descansar, a ver como batem no chão os raios de luz do fim da tarde, a ouvir o som denso que vem da cidade, o murmúrio rastejante do Mekong, estou aqui em trânsito entre aviões, estou aqui sentado só para ler o South China Morning Post, estou aqui por um absoluto desejo de nada, de coisa alguma? Mas sorri-lhe, inocente e magnânimo: “Just another gin tonic, please”
Miguel Sousa Tavares, “Não te deixarei morrer, David Crockett” - Desencontros – págs. 147-150, Edição, Clube do Autor, 2014






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