Chá com Letras Online: O OFÍCIO DE ESCREVER -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XVI



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XVI
144.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


O OFÍCIO DE ESCREVER
PARTE I
Quando quero escrever um romance começo pela história. E, a seguir, pelos personagens. A história e os personagens são o coração, o sangue e o sistema circulatório de um romance. Como o são na vida – que não é outra coisa que não um acumular de histórias protagonizadas por pessoas, mesmo quando, por vezes, a vida mais nos parece um mau romance e somos tentados a dizer, como Shakespeare, life is a tale told by an idiot.
Isto, porém, não é consensual entre os escritores. Há quem diga poder dispensar quer a história, quer os personagens, e mesmo assim ser capaz de escrever um romance. Um romance feito só de palavras. Não é essa a minha crença, pelo contrário: os grandes romances, para mim, são aqueles em que um escritor consegue escrever silêncio no meio das palavras e justamente para não atrapalhar a história. As histórias, para mim, a maneira como elas aparecem aos escritores, vindas aparentemente do nada, são um milagre e um mistério – que, vários livros depois, ainda não consigo decifrar, e menos ainda, antecipar. E a função do escritor é ser um contador da história que lhe apareceu ou que ele procurou e fez com que aparecesse. A sua função não é, então, a de complicar, distrair, minimizar a história, achando-se – ele e a sua escrita – maiores do que a própria história. Daí que, tal como eu vejo este ofício, as palavras do escritor sejam apenas o traço de ligação, o instrumento que preenche os silêncios da história e a ligam. Mas não é fácil escrever no silêncio nem é fácil escrever silêncio, num mundo com demasiadas vozes e demasiadas e mais feias, mais gastas, palavras.
Porém, eu sei que a leitura exige silêncio a toda a volta para podermos escutar a voz interior da literatura. A literatura convoca-nos ao silêncio, como toda a arte, começando pela própria música, mas também a pintura, a fotografia, a arquitectura, o cinema. Por isso, a literatura que não respeita o silêncio de que o leitor precisa torna-se apenas mais uma voz dispersa no meio da vozearia geral. Aprendi que para escrever é preciso ter um imenso respeito pelas palavras; ter medo das palavras. Por mais deslumbrante que seja a paisagem que contemplamos, devemos pensar se vale a pena fotografá-la, pois sabemos que nenhuma fotografia, por mais perfeita, conseguirá reproduzir o que o olhar viu e, assim sendo, acaba por servir para trair a memória do olhar. Também por melhor que se escreva, nunca se conseguirá exprimir por inteiro a grandeza ou a miséria das coisas imensas que sabemos. É aí que entram a história e os personagens. Eles são os elementos decisivos para chegar onde queremos, para encher o livro. Depois, é com o talento de cada um.
Não sei bem se entendi o significado do tema proposto para esta mesa e esta minha intervenção: “Cada livro é a antologia corrente da existência” – nem sei se é importante ter entendido. Cada livro não é isso, com certeza. Mas, se estamos a falar dos livros que eu penso, todos eles contêm homens, mulheres, velhos, crianças, alegres ou tristes, ricos ou pobres, vencedores ou vencidos – toda a condição humana, como nos habituámos a vê-la. Fazemos a essa gente, nas nossas histórias, o que a vida fez connosco – ou então, o inverso: o que gostaríamos que ela tivesse feito e não fez. Dentro da imensa omnipotência da nossa função de contadores de histórias, fazemos o que queremos dos nossos personagens: fazemo-los felizes e logo infelizes; deixámo-los serem amados e depois traídos ou abandonados; dotamo-los de nobres sentimentos como honra, princípios, valores, ou aproveitamos para retratar neles alguns dos que mais desprezamos, seres mesquinhos, mentirosos, oportunistas; no fim, até decidimos matar uns e poupar a vida a outros. E seguimos em frente porque tudo isto, afinal, era a feijões. Apenas uma história. E nem gastamos tempo a olhar pata trás, para agradecer a essa gente a que demos vida e que, uns agarrados aos outros, ergueram para nós o esqueleto de um livro, que, no fim de contas, nunca lhes pertenceu. Não há maior ditador maior manipulador da alma humana, do que um escritor fechado dentro do seu livro.
(…)
[A segunda parte desta crónica será publicada na próxima semana.]
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA– “O ofício de escrever” – págs. 259/262, Edição, Clube do Autor, 2014

Imagem In: http://tesorosmalvalr.blogspot.com/.../paz-escultura-con...
























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