Chá com Letras Online: DE NOITE - LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XII



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XII
140.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


DE NOITE
Em casa dos meus pais o jantar era uma cerimónia a que só se conquistava o direito de acesso depois de ter alguma idade e algum estatuto intelectual: aquele que nos permita ficar calados o tempo todo, sem perder palavra das conversas dos grandes. Todas as noites, como dizia a minha avó – a quem aquelas intermináveis e acaloradas refeições entediavam – salvava-se a Pátria à roda da mesa. E havia quase sempre gente extraordinária que ajudava a salvar a Pátria e que, aos nossos olhos de criança, eram autênticos personagens de romances. Havia escritores e poetas de várias línguas, actores de teatro sem companhia e cineastas sem subsídio, pintores, mais tarde célebres, que vendiam gouachesno fim do jantar, revolucionários perseguidos pela PIDE misturados com tias que se correspondiam com Salazar, jornalistas autênticos, daquelas revistas de que eu sonhava ser fotógrafo quando fosse grande – o Paris - Match, o L´Express, a Time, o Nouvel Observateur – e, entre todos, o meu favorito, um inglês esfuziante chamado Keith Botsford, do Observer, amigo do Dominguin, sobre quem tinha escrito um livro, fanático de touradas, futebol e vinho tinto que, um dia, em Londres, me levou ao estádio ver o West Ham-Chelsea, com um farnel de pão e chouriço e duas garrafas de tinto, berrando todo o tempo como um possesso.
Em casa dos meus tios, no Marão, onde vivi parte da minha infância, os jantares eram ainda mais longos e loucos. Ali, na solidão da serra, cada pessoa era um personagem e, quanto maior era o isolamento, mais dramáticas e absurdas eram as discussões sobre o estado do mundo, a natureza humana e as andanças divinas. Cinquenta anos depois da proclamação da República, discutia-se ainda a querela Monarquia República como se fosse a coisa mais urgente. O meu tio que era um monárquico furioso, quando recebia para jantar um vizinho republicano, igualmente feroz, instalava na mesa uma bandeirinha monárquica, ao que o outro respondia, na própria casa, com a bandeira do 5 de Outubro. Uma vez, juntaram-se em território neutro, no baptizado de um sobrinho comum: cada um levou sua bandeirinha e espetou-a da respectiva cabeceira da mesa.
Eu, que conquistara aos seis anos o privilégio de jantar à mesa dos grandes, não estava, porém, autorizado, em caso algum, a levantar-me antes do fim da refeição – coisa que acontecia sempre depois da meia-noite. Não me lembro de ter assistido ao fim de um único jantar: invariavelmente adormecia a meio e ali ficava, com a cabeça sobre o prato, sem ninguém se incomodar rigorosamente nada, até chegar a altura de me carregarem ao colo para a cama.
Também não me lembro de ter visto jamais as luzes de casa dos meus pais apagados antes das três ou quatro da manhã. Quando não havia visitas, que se atrasavam sempre pela madrugada, a minha mãe ficava a escrever ou a recitar poesia em voz alta. Fiquei sempre com a convicção funda de que a noite se fez para escrever, tal como aprendi então num poema da Mensagem, que ela me ensinou, sobre D. Dinis:
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver…
Ela própria escreveu alguns poemas sobre a noite, dois dos quais com o mesmo título: “Noite”. Porém, o meu preferido é um poema chamado “Luar”, onde está explicado e resumido, se assim posso dizer, todo este familiar fascínio pela noite. É assim:
Toma-me ó noite em teus jardins suspensos
Em teus pátios de luar e de silêncio
Em teus adros de vento e de vazio.
Noite
Bagdad debruçada no teu rio
País dos brilhos e do esquecimento
Com o teu rumor de cedros e teu lento
Círculo azul do tempo.
Com uma infância assim, não admira que eu me tenha tornado também um ser nocturno incorrigível. Há pelo menos vinte anos que não me sei deitar antes das três da manhã e que não adormeço sem ler um livro. Viver comigo não é fácil, até porque eu jamais fui capaz de responder à mais lógica das perguntas: “Mas o que é que tu ficas a fazer de noite?”
Realmente, não sei dizer ao certo. Suponho que o facto de ter aprendido a distinguir todos os ruídos da noite, de conhecer o som dos animais nocturnos, de me ter tornado viciado no silêncio da noite, de saber localizar as estrelas do céu, não seja resposta suficiente. Há qualquer coisa mais para além disso, qualquer coisa de indefinível e única. Há um mundo diurno e um mundo nocturno. Este é o reino da luz e das sombras, um mundo de silêncio onde cada som tem um sentido, uma utilidade e por onde se sente deslizar esse” lento círculo azul do tempo”.
De noite morre-se mais devagar.
Miguel Sousa Tavares – “Não te deixarei morrer, David Crockett” – DE NOITE, PÁGS, 105/108 – 2016, Edições Clube do Autor. S.A



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