LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XI
133.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
Querida Marta
Custa-me imaginar-te aí, em Nova York, tão longe e tão fora de tudo que eu julgava (e ainda julgo) ser o teu mundo. Compreendo a tua necessidade de estares só, mas não posso deixar de temer as feridas causadas pelo que deixaste para trás. Vi a tua filha a caminho da escola, no outro dia, com o teu ex. a abrir-lhe a porta do carro e ela a atravessar a rua. Estava uma daquelas manhãs lindas, de Outubro, em Lisboa, com uma espuma do rio que fica a pairar sobre a cidade e, de repente, senti como se fossem minhas as saudades que tu deves ter dela.
No fundo, como eu vejo a tua decisão, nem é tanto através da explicação clássica para todas as ocasiões que é a necessidade de te encontrares contigo mesma, de pensares longe de tudo e de todas as pressões, etc. e tal, o blá-blá-blá do costume. O que eu vejo é a necessidade de te desligares temporariamente da essência das coisas e te deixares levar por um excesso de aparências, para o que Nova York é, de facto, o lugar rigorosamente adequado. Não é bem uma fuga, mas uma trégua: viver também cansa. Viver, como nós vivemos hoje em dia as relações, é um sufoco ou um inevitável vazio. “Antes a solidão, que é inteira” como dizia o Rilke.
Querido João
Nova York é, como tu dizes, o mundo das aparências. Mas que extraordinário desvario de aparências este! Tudo – os museus, os concertos, a iluminação das montras, os restaurantes do Village, o Central Park, os espectáculos – tudo parece inventado para nos distrair continuamente. Estou no lugar certo para quem não quer estar em lugar algum.
Isso, de me falares da minha filha, foi um truque baixo, mas eu percebi que a intenção não era má. Todavia, lá no fundo, acho que mesmo que tu não entendas, não abandonei a minha filha, não abandonei coisa alguma. Também não fugi, nem estou à procura de mim mesma, nem nenhum desses disparates com que as pessoas gostam de se entreter em auto - análises ou em análises sobre o alheio. A explicação – que não me interessa particularmente – seria demasiado complicada e tu, que és homem, não a entenderias, por mais que genuinamente te esforçasses.
Acontece com vocês, homens, um desejo de luta permanente, que é doentio. É doentio dentro das relações, onde parece nunca poder haver paz, e é doentio mesmo depois de acabadas as relações, na forma como vocês ficam a rebobinar o filme e a querer à viva força encontrar ainda novas possibilidades de conflito. No fundo, o que vos magoa nem é o fim da relação, mas o fim do combate permanente em que transformam as relações. Nem imaginas a sensação de imensa paz e libertação que é estar aqui, longe do alcance das investidas bélicas do meu ex. longe daquilo a que tu chamas “a essência das coisas”.
Querida Marta
Oh, quanta agressividade, quanta amargura mal disfarçada, nessa tua paz e libertação! Escrevi-te uma carta de amigo – pessoa a pessoa, ser humano a ser humano – e tu respondeste como se responde a um inimigo de classe, como se eu fosse o representante das forças do mal! Longe de mim interpelar a tua solidão e as tuas razões, cada um de nós é uma ilha e cada solidão cuida de si. Tu em Nova York, eu em Lisboa – o lugar é indiferente.
Mas no fundo, ao ouvir-te pensar através do que escreves, pergunto-me se na origem de todos os males de que todos nos queixamos não estará um equívoco civilizacional: quem foi que disse que o homem e a mulher foram feitos para viver juntos? Porque não haveremos de ser como os restantes animais da natureza, que só se juntam para acasalar e para proteger as crias nos primeiros tempos de vida, após a que o macho parte para a caça e a fêmea fica à espera do próximo cio?
Querido João
Não percebeste nada e claro que tinhas que reconduzir tudo à minha suposta militância na guerra dos sexos. É o que eu digo, vocês não sobrevivem sem uma boa guerra. Mesmo à distância, consigo ver o que te deve ir na tua cabeça, macho altivo e orgulhoso, combatente, mas não vencido, solitário, mas não arrependido, retirando-se para viver isolados os últimos anos da sua vida, como o veado nas montanhas. Pobre João! Olha, se porventura um 14.º andar em Manhattan pode fazer as vezes de uma montanha e se te faltar interlocutor para a tua causa (a solidão só vale a pena se tiver espectadores para a admirarem…), vem cá fazer-me uma visita. Mas não venhas em época do cio nem na da caça, diz-me a experiência que são essas ocasiões que fazem os amigos.
Miguel Sousa Tavares – “Não te deixarei morrer, David Crockett” –Nova York - Lisboa – Págs. 51/54 – 2016, Edições Clube do Autor. S.A
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