LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES VIII
130.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
A ESTANTE
Quando eu era miúdo, em casa dos meus pais havia uma estante da minha mãe e a estante do meu pai. E, tirando o pequeno quintal onde eu e o meu irmão jogávamos futebol, alternando entre as duas únicas variantes que o “estádio” e as “equipas” presentes permitiam (guarda-redes e avançados, avançado e guarda-redes), as estantes dos meus pais eram a única alternativa de ocupação dos “tempos livres”, como agora se diz, visto que a televisão não havia e vida social para a infância da casa também não. As duas estantes eram radicalmente diferentes: a da minha mãe era uma coisa minimalista e extremista, que continha, não os livros que ela tinha lido, mas apenas os de que tinha gostado, e quase tudo poesia: Homero, Dante, Byron, Pessoa, Camões, Rilke, Shakespeare, Lorca, Machado, Whitman, Sena, Herberto Hélder, Ruy Belo, Ruy Cinatti, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e outros brasileiros; já o meu pai, que era um saber Enciclopédico, tinha uma vasta estante onde acumulava todas as suas leituras, além de uma razoável discoteca de música clássica, que escutava todos os domingos, com uma solenidade e um imposto de silêncio dignos de Carnegie Hall. Claro que o que me interessava era a estante do meu pai e, dentro dela, a prateleira dos romancistas brasileiros. Devorei todo o Jorge Amado e o Eurico Veríssimo; tropecei, obviamente, no Guimarães Rosa; e passei, sem recordação, pelo Machado de Assis e o seu célebre celebrado Dom Casmurro, de que não guardei recordação alguma, nem sequer a de lembrar-me se o teria terminado.
Os anos foram passando, eu fui lendo uma ou outra geração de escritores brasileiros e, volta e meia, repetia para mim mesmo: “Tenho de voltar a ler Machado de Assis porque, na verdade, não posso dizer que o li se não me lembro de nada” Mas, por uma razão ou por outra, fui sempre esquecendo o projecto e duas vezes que o procurei em livrarias aqui, não havia. Há uns tempos, ofereceram-me um livro, lá no Brasil, e comprei o DVD do “seriado” que a Globo fez (do mesmo autor da excelente adaptação do Os Maias, que a SIC passou a horas tardias e mortais). Pois bem, chegado a Lisboa, não descobri, entre a bagagem, nem uma nem outra. O Dom Casmurro,fazia jus ao seu nome, Bem, resumindo, lá arranjei outro livro da edição portuguesa. E ando a lê-lo por estes dias. Ando a lê-lo e fascinado. Para além da facilidade, quase provocante, da escrita de Machado de Assis, para além da fluência da sua narrativa, do seu sentido de humor subtilíssimo, o que mais me impressiona há mais de um século, em 1900, tinha ele sessenta e um anos. E, pensando nisso, pensei noutra coisa também: em como a grande literatura não tem idade nem tempo, é eterna e sempre moderna, no sentido em que, cem anos depois de um grande livro ter sido escrito, ele é tão actual como era então. E vice-versa, o que hoje é um grande livro acabado de publicar, sê-lo-ia também há cem anos.
Em minha distraída observação, existem quatro artes que são essenciais à vida porque são elas mesmas manifestações de vida, aquilo que nos distingue dos animais: a arquitectura, porque nós habitamo-la, literalmente, vivemos nas casas, atravessamos as pontes, visitamos os palácios e os monumentos. A música, porque é a outra língua que todos falamos, o instrumento que usamos em vez do silêncio, aquilo em que transformamos todos os sons da natureza do mundo que habitamos – e é por isso que uma criança escuta a música, atenta e fascinada, antes mesmo de fixar a atenção nas palavras que ouve. A pintura (de que a fotografia e o cinema são sucedâneos), porque representa o nosso olhar sobre o mundo e a maior parte do que sabemos e intuímos vem do que o olhar nos revela. A literatura, porque representa a nossa capacidade de abstracção, de ficcionar, de inventar e de imaginar, e isso faz de nós, mais do que animais racionais, animais emocionais.
Pensando em como cada uma das artes evoluiu ao longo dos tempos, dou-me conta de que, como a Lei de Lavoisier, nada se criou e nada se perdeu, tudo se transformou, mantendo-se essencial enquanto arte. Tudo, excepto a música, talvez. De Facto, ninguém pode arriscar-se a dizer qua a catedral de Brasília, do Niemeyer, não se compara à Sagrada Família, do Gaudí, em Barcelona, ou, antes à catedral de Chartres; que o Rothko não se compara a Picasso, ou, antes ao Da Vinci; que o García Márquez não se compara ao Tchékhov ou, antes, ao Cervantes. Mas, na música, quem se atreve a dizer que a música de hoje se compara com Shostakovitch, ou, antes, ao Beethoven? Tudo isso que as rádios nos despejam diariamente em doses maciças pode ser óptima música para distrair, para dançar, até para meditar. Mas nada tem que ver com a grande música. Nada, rigorosamente. Eu, quando quero ouvir música, fecho-me na sala e recorro ao meu catálogo da Deutsche Grammophon. Essa é a grande música; o resto, por melhor que seja, é música para o carro ou para o duche, ou, no máximo, música para ouvir à noite, num terraço: o Brel, a Elis Regina, quem mais?
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA– “A Estante” – págs. 255/258, Edição, Clube do Autor, 2014
130.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
A ESTANTE
Quando eu era miúdo, em casa dos meus pais havia uma estante da minha mãe e a estante do meu pai. E, tirando o pequeno quintal onde eu e o meu irmão jogávamos futebol, alternando entre as duas únicas variantes que o “estádio” e as “equipas” presentes permitiam (guarda-redes e avançados, avançado e guarda-redes), as estantes dos meus pais eram a única alternativa de ocupação dos “tempos livres”, como agora se diz, visto que a televisão não havia e vida social para a infância da casa também não. As duas estantes eram radicalmente diferentes: a da minha mãe era uma coisa minimalista e extremista, que continha, não os livros que ela tinha lido, mas apenas os de que tinha gostado, e quase tudo poesia: Homero, Dante, Byron, Pessoa, Camões, Rilke, Shakespeare, Lorca, Machado, Whitman, Sena, Herberto Hélder, Ruy Belo, Ruy Cinatti, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e outros brasileiros; já o meu pai, que era um saber Enciclopédico, tinha uma vasta estante onde acumulava todas as suas leituras, além de uma razoável discoteca de música clássica, que escutava todos os domingos, com uma solenidade e um imposto de silêncio dignos de Carnegie Hall. Claro que o que me interessava era a estante do meu pai e, dentro dela, a prateleira dos romancistas brasileiros. Devorei todo o Jorge Amado e o Eurico Veríssimo; tropecei, obviamente, no Guimarães Rosa; e passei, sem recordação, pelo Machado de Assis e o seu célebre celebrado Dom Casmurro, de que não guardei recordação alguma, nem sequer a de lembrar-me se o teria terminado.
Os anos foram passando, eu fui lendo uma ou outra geração de escritores brasileiros e, volta e meia, repetia para mim mesmo: “Tenho de voltar a ler Machado de Assis porque, na verdade, não posso dizer que o li se não me lembro de nada” Mas, por uma razão ou por outra, fui sempre esquecendo o projecto e duas vezes que o procurei em livrarias aqui, não havia. Há uns tempos, ofereceram-me um livro, lá no Brasil, e comprei o DVD do “seriado” que a Globo fez (do mesmo autor da excelente adaptação do Os Maias, que a SIC passou a horas tardias e mortais). Pois bem, chegado a Lisboa, não descobri, entre a bagagem, nem uma nem outra. O Dom Casmurro,fazia jus ao seu nome, Bem, resumindo, lá arranjei outro livro da edição portuguesa. E ando a lê-lo por estes dias. Ando a lê-lo e fascinado. Para além da facilidade, quase provocante, da escrita de Machado de Assis, para além da fluência da sua narrativa, do seu sentido de humor subtilíssimo, o que mais me impressiona há mais de um século, em 1900, tinha ele sessenta e um anos. E, pensando nisso, pensei noutra coisa também: em como a grande literatura não tem idade nem tempo, é eterna e sempre moderna, no sentido em que, cem anos depois de um grande livro ter sido escrito, ele é tão actual como era então. E vice-versa, o que hoje é um grande livro acabado de publicar, sê-lo-ia também há cem anos.
Em minha distraída observação, existem quatro artes que são essenciais à vida porque são elas mesmas manifestações de vida, aquilo que nos distingue dos animais: a arquitectura, porque nós habitamo-la, literalmente, vivemos nas casas, atravessamos as pontes, visitamos os palácios e os monumentos. A música, porque é a outra língua que todos falamos, o instrumento que usamos em vez do silêncio, aquilo em que transformamos todos os sons da natureza do mundo que habitamos – e é por isso que uma criança escuta a música, atenta e fascinada, antes mesmo de fixar a atenção nas palavras que ouve. A pintura (de que a fotografia e o cinema são sucedâneos), porque representa o nosso olhar sobre o mundo e a maior parte do que sabemos e intuímos vem do que o olhar nos revela. A literatura, porque representa a nossa capacidade de abstracção, de ficcionar, de inventar e de imaginar, e isso faz de nós, mais do que animais racionais, animais emocionais.
Pensando em como cada uma das artes evoluiu ao longo dos tempos, dou-me conta de que, como a Lei de Lavoisier, nada se criou e nada se perdeu, tudo se transformou, mantendo-se essencial enquanto arte. Tudo, excepto a música, talvez. De Facto, ninguém pode arriscar-se a dizer qua a catedral de Brasília, do Niemeyer, não se compara à Sagrada Família, do Gaudí, em Barcelona, ou, antes à catedral de Chartres; que o Rothko não se compara a Picasso, ou, antes ao Da Vinci; que o García Márquez não se compara ao Tchékhov ou, antes, ao Cervantes. Mas, na música, quem se atreve a dizer que a música de hoje se compara com Shostakovitch, ou, antes, ao Beethoven? Tudo isso que as rádios nos despejam diariamente em doses maciças pode ser óptima música para distrair, para dançar, até para meditar. Mas nada tem que ver com a grande música. Nada, rigorosamente. Eu, quando quero ouvir música, fecho-me na sala e recorro ao meu catálogo da Deutsche Grammophon. Essa é a grande música; o resto, por melhor que seja, é música para o carro ou para o duche, ou, no máximo, música para ouvir à noite, num terraço: o Brel, a Elis Regina, quem mais?
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA– “A Estante” – págs. 255/258, Edição, Clube do Autor, 2014
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