Chá com Letras Online: A MINHA FORTALEZA - LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES IV



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES IV
126.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


A MINHA FORTALEZA
Uma vez, uma única vez na vida, há uns anos, recorri a ajuda psiquiátrica porque achei que aquilo que tinha de enfrentar era demasiado forte para a minha capacidade de luta e resistência. Compareci, totalmente vulnerável e disponível, às três primeiras sessões. Depois, quando a médica afirmou que o meu “tratamento” iria ser demorado e sugeriu mesmo psicanálise, eu reagi… e fugi. Presumo que ela tenha ficado a pensar que em nada me ajudou e que eu devo ter andado por aí à deriva desde então. Se assim pensou, enganou-se. Ela ajudou-me, e muito, o suficiente para eu ir-me embora, e antes que me tornasse dependente da sua ajuda. Ajudou, dizendo uma coisa de que nunca mais me esqueci: “Você tem uma grande defesa contra o mundo e contra tudo: escreve. E escrever é como construir uma fortaleza contra os ataques de fora.”
Quando me sento em frente do computador – e todos os dias e todas as noites me sento -, eu fecho-me, de facto, do mundo lá fora. Fecho-me, é certo, de muitas coisas boas e que não queria perder, mas que sei ser o preço a pagar, e fecho-me, acima de tudo, daquilo que me magoa, que me ofende e poderia destruir-me se não construísse um outro mundo, dentro de uma fortaleza, onde estou como estava na barriga da minha mãe: longe de um “sítio tão frágil como o mundo”. Como nos Jardins Proibidos, de Paulo Gonzo: “esse jardim onde só vai quem tu quiseres, onde és senhora do tempo sem fim.”
Como dizia a minha mãe, faz-se sempre a um escritor a mais estúpida das perguntas: “Porque escreve?” Na maioria das respostas que tenho lido, os “arguidos” respondem com o facto de não conseguirem conter-se, de sentirem uma necessidade invencível de escrever até caírem de exaustão. Escrever seria assim uma espécie de vício, de condenação a que os escritores não poderiam escapar. Eu não acho isto, exactamente assim. Não é assim que as coisas, pelo menos começam comigo. Um livro não começa a mexer-se por si só, tal como uma parede não se move sem uma grande força que invista contra ela. É sempre mais fácil e mais apetecível ficar quieto do que iniciar alguma coisa. Iniciar, continuar, forçar e levar até ao fim é muito mais complicado e, no caso de um livro, não acontece apenas porque não se consegue parar.
O meu segundo romance levou-me três anos a escrever. Três anos é muito tempo – muito tempo para ficar, dia após dia e noite após noite, sentado em frente de um computador até os olhos chorarem de cansaço e ir deitar-me de madrugada, perguntando a mim mesmo, se valeria a pena deixar de viver toda a vida que corria lá fora e tantas as coisas de que eu gostava e a que tinha renunciado para ficar fechado dentro do meu castelo, onde a vida real fora substituída por uma outra vida, inventada e construída, frase a frase, página a página – e para quê? Quando enfim emergi à luz do dia, com mais umas duas dioptrias em cada olho, tantas e tantas as pessoas queridas se tinham afastado, cansadas de esperar pelo meu regresso, e a minha vida real perdida do meu alcance, pensei nisso mesmo: porque escrevo, afinal? Rosa Monteiro, é uma grande, grandessíssima escritora espanhola, que tive o prazer de conhecer num festival literário em Paraty, no Brasil, diz que “escrevemos sempre contra a morte.” Talvez sim, no sentido em que escrevemos sempre sobre a vida: a que é e a que gostaríamos que fosse, a que vivemos e a que apenas imaginámos. Sei que, ao escrevermos, estamos, seguramente, a prestar homenagem à vida, que é um milagre retido dia após dia. E talvez então estejamos também, e estupidamente, a tentar enganar a morte. Mas nem isso consegue dar resposta cabal à pergunta “porque escrevemos?” Talvez a resposta mais acertada seja a mesma que Sir Edmund Hillary deu quando lhe perguntaram porque tinha decidido escalar o Everest, tornando-se o primeiro homem a fazê-lo: “porque estava ali.” Escrevemos porque estava ali um livro à nossa espera para ser escalado e conquistado.
Miguel Sousa Tavares, “Não se encontra o que se procura” – A minha fortaleza – págs. 121/124, Edição, Clube do Autor, 2014



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