LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES II
123.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
JESSICA
Eu não conheço Jessica. Sei que é actriz, mas isso também não diz muito: hoje, neste país, quem não é nada em concreto, é actriz, escritora ou empresária. Ou o mesmo, no masculino. Mas presumo que Jessica seja actriz de novelas, uma fábrica de representação que produz dezenas de actores e actrizes todos os anos. Às vezes, até acumulam: são atrizes e escritoras, por exemplo. Dedicam-se ao género literário que funde a autobiografia com a auto-ajuda, produzindo livros sobre o tema ”que as marcaram muito”, tais como um divórcio, um cancro de mama que ultrapassaram, um pai que morreu, ou mesmo a palpitante descrição de uma gravidez de gémeos que lhes aconteceu e de que foram tomando notas dia a dia. Até podia, este último, ser um tema interessante, se ao talento literário se juntasse a capacidade de imaginação e de sensibilidade. A Marguerite Yourcenar escreveu um pequeno livro maravilhoso chamado Souvenir Pieux,em que o que tinha à partida era um caderninho onde o pai anotara hora a hora, durante vários dias, as temperaturas e o estado de saúde da mãe – que acabaria por morrer em consequência de complicações pós-parto, como se diz. Mas não seria justo, concedo, chamar para aqui a Yourcenar, seria como comparar o Otelo ao Fidel: Faltam-lhe leituras, como o próprio Otelo reconheceu, a seu tempo.
Regresso, então, a Jessica, que eu não conheço. Como outra tanta gente que “está no mercado” ele gere a sua própria imagem através do Facebook, o Instagram e essas coisas que tanto ocupam a Humanidade nos tempos que correm. Ela está, pois, e muito, legitimamente, dentro de Facebook system – fora do qual, ao que parece, é como se não existisse. Ela foi pelas armas que escolheu que Jessica viria a ser delapidada em praça internáutica. Sucedeu que Jessica foi participar – não como profissional, mas como actriz – num desfile de moda, desses vários onde esta gente pode ser sempre fatalmente encontrada. Ou na plateia, ou na passerelle, ou nos bastidores, onde passam por estilistas, devidamente apoiados pelas câmaras e pela cultura, na eterna e jamais cumprida esperança de exportarem para o mundo inteiro roupas que matariam de ridículo qualquer aborígene ou nova-iorquino que se atrevesse a sair assim à rua. Aliás, pelo que contacto ao folhear as revistas que nos dão conta do sucesso da Moda Lisboa, da Moda Porto e do Portugal Fashion, as “novas tendências”, como eles dizem, vêm-se adaptando às evidências: se não conseguem vender a roupa que vestem aos modelos, tratam de não lhes vestir roupa. E, como o interesse é chamar as atenções dos fotógrafos e criar nome, despem, pura e simplesmente, as meninas e os rapazes. Mas não há nudez impune. A nudez é uma coisa muito séria, mais séria ainda que a beleza. É muito difícil saber carregar consigo a beleza, um dom que os deuses distribuíram com avareza. Merecer a beleza, é saber viver e envelhecer com ela, é um exercício complicado. Mais ainda se a beleza se transporta em estado de quase nudez. Já imaginaram a responsabilidade de apresentar ao olhar alheio um corpo deslumbrante, capaz de atrair sobre si a cobiça, a inveja, a luxúria e o puro desejo, e fazê-lo como quem não se exibe, apenas se oferece em contemplação?
Pois, foi isso mesmo que Jessica não terá medido devidamente. Pelo menos, é isso que dizem os seus detractores, porque eu jamais me atreveria a dizer nada de semelhante. A onda de mulheres que roídas de inveja, caíram em cima dela nos prostíbulos da maledicência das redes sociais, foi tamanha que logo (como eles também adoram dizer) se tornou “viral”. E um vírus é um caso sério. Um vírus de inveja feminina, alimentada nas redes sociais, nem sei o que seja, apenas consigo imaginar como uma espécie de ETAR de todos os dejectos da natureza humana. Que estava gorda, que brincava às profissionais, que a vaidade e o exibicionismo a cegaram, que devia fazer ginásio se queria fazer passerelle, etc. e tal, coisas desta profundidade ética e filosófica em que a Pária se derrete de emoção e participação, à hora do expediente. Não compreendo: eu olhei as fotografias da Jessica desfilando em biquíni – num qualquer dia do mês de Outubro em que choveu como se o céu nos quisesse apagar de vez qualquer recordação do Verão e das Jessicas em biquíni que por lá passam e que também julgávamos inesquecíveis. Olhei e voltei a olhar, e não compreendi. Eu vi, sim, uma Jessica que me pareceu linda, um corpo perfeito, curvas, pernas, cabelo ondulando e um sorriso aparentemente feliz. Que mais queriam de Jessica?
A verdade, porém, é que a “comunidade da rede” fez do caso dela, do emocionante caso da Jessica desfilando, a questão da semana – ao que me contaram os próprios “jornais de referência” - Jessica declarou-se vítima de bullyingcibernáutico, comparou-se a uma qualquer actriz internacional a quem tinha sucedido o mesmo, e soltou um grito desesperado por ajuda. Como seria de esperar, acudiram-lhe os homens e apedrejaram-na as mulheres: sempre há uma diferença entre o mundo muçulmano e o judaico-cristão, que é o nosso. No meio da algazarra, e ao que percebi, até as feministas se dividiram entre as que proclamaram o infalível grito de guerra da “mulher e o direito ao próprio corpo”, e as que, mais radicais (ou mais irremediavelmente feias), se juntaram à crucificação porque a Jessica exibira o seu próprio corpo… para os homens. Não tomei nota da posição dos gays e lésbicas nesta contenda e presumo que, como de costume, a família terá estado incondicionalmente ao lado dela. De ora em diante, vou andar sempre com um olho na Jessica.
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA – “Jessica”, págs. 133/137, 2001 , Clube do Autor
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