Chá com Letras Online: A CRIAÇÃO DO MUNDO - LEITURAS DE MIGUEL TORGA XXXII



LEITURAS DE MIGUEL TORGA XXXII
122.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal



A CRIAÇÃO DO MUNDO

Excerto 2
…Voltei a Agarez na moto do Sr. Fernando, irmão das senhoras catequistas. Vinha atrás, muito agarrado a ele, a ver deslizar lameiros, aldeias e montes, e a sentir na cara a frescura do vento. Quando começamos a subir o Marão, os olhos esbranquiçados da Senhora Lúcia foram perdendo pouco a pouco o brilho sinistro. No alto eram dois tições apagados.
Na descida para Vila Real, um bando de perdizes atravessou a estrada, e o Sr. Fernando, grande atirador, foi sobre ele de pistola em punho. E eu fiquei a contemplar o panorama de cima de uma fraga.
Era um extenso mapa ondulado estendido a meus pés, que um só nome povoava: Agarez, lá longe, oásis assinalado pela copa gigante do negrilho.
Ia novamente ser ali um pobre rapaz como os outros. Não conseguira fugir à condenação da enxada. Regressava vencido e humilhado. Paciência. Depois de alguns dias de constrangimento, entraria naturalmente na intimidade das pessoas e das coisas.
Em casa nada mudara. A mesma pobreza, a mesma fuligem, o mesmo caldo. As galinhas esgadanhavam no quinteiro, o porco grunhia no cortelho, a burra roncava na loja. Mas as minhas saudades tornavam surpreendente cada encontro. As comidas outrora enjoadas sabiam bem, ouvia chiar um carro e corria à porta vê-lo passar, queria saber de tudo e de todos.
À noite, o meu Pai deu as graças costumadas.
- Pelas almas do Purgatório…
- Padre nosso, que estais no céu…
- Pelos infiéis…
- Padre Nosso…
- Pelos frutos do mar e da terra, que Deus os traga a porto de salvamento para sustento dos pescadores, e com eles fazemos o serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo…
- Padre Nosso…
- A S, Silvestre, que nos livre de águas correntes, cão derramado e homem atribulado…
- Padre Nosso…
- Pela conservação da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana…
- Padre Nosso…
Embora, como dantes, cabeceasse de sono antes da Salvé Rainha final, que segurança dava aquela entrega das coisas do mundo à protecção do céu! E que paz, dormir numa cama sem campainha à cabeceira.
No dia seguinte, a segurar a burra de uma das fúrias dela, dei cabo das mãos mimosas, como as designou minha Mãe. E pouco depois, a atravessar o povo, verifiquei com mágoa que não eram só elas que eu trazia sensíveis. Diante do acolhimento escarninho que recebia, em vez do fraterno acolhimento que esperava, todo eu parecia em carne viva.
- Já viestes?! Depressa aviaste o recado!
A princípio sorria. Por fim, ou disparatava, ou fazia peito à onda.
- E a si que lhe importa? Tem alguma coisa com isso?
- Nada. Estou só a estranhar! Pelos vistos apertaram-te as saudades da sachola…
- Pois foi.
Alguns entravam com pezinhos de lã, e depois ferravam a choupa.
- Oh! Oh! Quem eu estou a ver! Cedo tiveste férias, rapaz?
- Não são férias. Voltei de vez.
- Essa agora! Então que fazias tu no Porto?
- Era criado.
- E toda a gente a pensar que andavas na Universidade!
Recosido por dentro, continuava a esgueirar a água. A felicidade das primeiras horas azedara e amargava-me a boca.
- Deixa-os ladrar!... – aconselhou meu Pai, quando me queixei.
- Aqui não ficas, descansa. Por isso, coração ao largo…
Olhei-o em silêncio, já sem saber ao certo se queria ficar, se queria partir. Descobrira que havia humilhações maiores do que apanhar castanhas de terça.
Mas ele que resolvesse.
Minha Mãe, sempre dela, de não me ver longe do seu bafo, quando D. Guilhermina de Vessadios apareceu no dia de feira, pedindo-lhe um empenho para o Monsenhor Barros, de quem era grande amiga. E lá fomos os três falar com ele à Vila.
Depois de nos fazer esperar duas horas numa sala abafadiça, de tantos reposteiros de veludo, recebeu-nos num escritório sombrio, forrado de livros. Quis saber tudo da família, quem éramos, quem não, perguntou a nota do exame, não tirava os olhos de mim, como se estivesse a ler-me por dentro, e prometeu mandar-me para um colégio de Espanha, onde já estava o Latoeiro, um ano mais velho do que eu na escola. Frades beneditinos.
De volta, meu Pai ouviu o nosso relatório, e deitou contas à vida. Ordenava-me e ficava no convento, sem nada de meu. Não era isso que convinha. Ser padre valia a pena, mas numa boa freguesia, com minha irmã a tratar da casa. Assim, muito obrigada.
E mudou de ideias.
- Está resolvido. Vais até ao Brasil.
MILGUEL TORGA – Criação do Mundo I, págs. 71 a 75, Coimbra : ed. autor, 1969-1981




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