Chá com Letras Online: A CRIAÇÃO DO MUNDO I - LEITURAS DE MIGUEL TORGA XXXI



LEITURAS DE MIGUEL TORGA XXXI
121.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal



A CRIAÇÃO DO MUNDO I
EXCERTO 2
Pouco depois dos exames, o Sr. Botelho mandou chamar o meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam mal, e tudo o mais. Em todo o caso, visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.
Meu Pai sorriu tristemente. O Sr. Botelho estava a mangar…Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada… gostava, gostava, de me ver professor, ou médico, ou advogada. Mas nicles, faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde… Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse se. Se arranjasse a meter-me de graça ou apagar qualquer coisa pouca…
O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam amarrados à terra, a embrutecer, ou eram arrebanhados pela Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.
- É o que terá mais certo… - concluiu meu Pai, resignado. – A cavar é que não fica. Bem bastou eu.
Não era a primeira vez que fazia tal afirmação. Mas nunca pusera nela tanta firmeza. Como lhe veio à boca, naquele momento, toda a amargura de uma longa e atribulada crónica familiar, de que fora comparsa, que não queria ver prolongada em mim. Crónica que, de tão impressiva, se me gravara na memória através dos anos, um episódio ouvido hoje, outro amanhã.
Meu avô paterno. Carreiro; meu avô materno, almocreve. Ambos honrados e trabalhadores, e ambos pobre toda a vida. Recordava a madrugada em que o primeiro, o das orações em verso, descia a costa do Pinhão agarrado às chedas do carro, sem conseguir evitar a tragédia: a junta, ainda nova, desarvorada, a pipa tombada e rebentada, o vinho tratado a correr pelas lajes abaixo, todo o ganho da carregação perdido, e meu Pai, que por um triz não fora atropelado, de aguilhada na mão a chorar a desgraça.
De coração apertado atravessava também o rio a vau, sentado nas molhelhas dos bois, entrava nas quintas à erva, sujeito a levar um tiro, tiritava de frio nas noites de Inverno dormidas onde calhava, a roupa encharcada a servir de cobertor, e rilhava uma côdea quando a havia, a enganar o estômago.
Via depois meu avô materno a calcorrear a estrada do Porto à frente da récua de machos, cercado de lobos no Marão, assaltado pelo bando do Reigaz no alto de Quintela, miserável sempre, sem poder dar bragal a cada filha, quando as casava, mais que uma triste manta. E compreendia que ali apenas me esperava um destino igual. Mas o Brasil fi cava longe, e o seminário era ser padre…
MILGUEL TORGA – Criação do Mundo I, págs. 55 a 57, Coimbra : ed. autor, 1969-1981




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