LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XXI
110º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
Além do forno de cozer o pão, que ficava ao lado da porta da cozinha, o inventário desta parte do quintal ficará completo com a referência a outra pocilga, maior que aquelas em que só cabiam as barrãs com as suas proles, e ainda assim algo apertadas. Essa pocilga grande abrigava, porém não em todos os anos, um porco que havia sido escolhido para engorda, uma besta desagradecida a quem eu, pelo menos uma vez por semana, de forquilha em punho, tinha de mudar a cama, retirando de lá a palha malcheirosa, imunda de mijo e cagadas, e substituindo-a por palha nova que não tardaria nem uma hora a perder a frescura do seu olor natural. Um dia, estava eu ocupado nesta operação, quando principiou a chover, primeiro umas gotas grossas e esparsas, logo com força e insistência. Achei prudente retirar-me para a proteção da barraca da burra, mas a voz do meu avô deteve-me a caminho: “Trabalho que se começa, acaba-se, a chuva molha, mas ossos não parte.” Era certo. Tornei a empunhar a forquilha e, sem pressas, sem precipitações, como um bom trabalhador, terminei a tarefa. Estava encharcado, mas feliz.
… “ Ajudei muitas vezes o meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avô, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de verão, depois da ceia, meu avô me disse: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira.” Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. […] Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava”.
Joaquim Vieira, JOSÉ SARAMAGO ROTA DE VIDA – Uma Biografia. Págs. 37/39, 2018 - Livros Horizonte
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