LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XVII
106.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
DESFORRA – EXCERTO DO CONTO - 2.ª PARTE
Correu para o quintal, mas não passou da soleira da porta. Dois homens e uma mulher seguravam o porco. Outro homem com uma faca ensanguentada, abria-lhe um rasgo vertical no escroto. Na palha brilhava já um ovóide achatado, vermelho- o porco tremia todo, atirava gritos entre queixas que uma corda apertava. A ferida alargou-se, o testículo apareceu, leitoso e raiado de sangue, os dedos do homem introduziram-se na abertura, puxaram, torceram, arrancaram. A mulher tinha o rosto pálido e crispado. Desamarraram o porco, libertaram-lhe o focinho, e um dos homens baixou-se e apanhou os dois bagos, grossos e macios. O animal deu uma volta, perplexo, e ficou de cabeça baixa, arfando. Então o homem atirou-lhos. O porco abocou, mastigou sôfrego, engoliu. A mulher disse algumas palavras e os homens encolheram os ombros. Um deles riu. Foi nessa altura que viram o rapaz no limiar da porta. Ficaram todos calados e, como se fosse a única coisa que pudessem fazer naquele momento, puseram-se a olhar o animal que se deitava na palha, suspirando, com os beiços sujos do próprio sangue.
O rapaz voltou para dentro. Encheu um púcaro e bebeu, deixando que a água lhe corresse pelos cantos da boca, pelo pescoço, até aos pelos do peito, que se tornaram mais escuros. Enquanto bebia, olhava lá fora as duas manchas vermelhas sobre a palha. Depois, num movimento de cansaço, tornou a sair de casa, atravessou o olival, outra vez sob a torreira do sol. A poeira queimava-lhe os pés, e ele, sem dar por isso, encolhia-os, para fugir ao contacto escaldante. A cigarra rangia, em tom mais surdo. Depois da ladeira, a erva com seu cheiro de seiva aquecida, a frescura entontecedora debaixo dos ramos, o lodo que se insinua entre os dedos dos pés e irrompe para cima.
O rapaz ficou parado, a olhar o rio. Sobre um afloramento de limos, uma rã, parada como a pimenta, de olhos redondos sob as arcadas salientes, parecia estar à espera. A pele branca da goela palpitava. A boca fechada fazia uma prega de escárnio. Passou tempo, e nem a rã nem o rapaz se moviam. Então ele, desviando a custo os olhos, como para fugir a um malefício, viu no outro lado do rio, entre os ramos debaixo dos salgueiros, aparecer outra vez a rapariga. E novamente, silencioso e inesperado, passou sobre a água o relâmpago azul.
Devagar, o rapaz tirou a camisa. Devagar se acabou de despir, e foi só quando não tinha roupa nenhuma no corpo que a sua nudez, lentamente, se revelou. Assim como se estivesse curando uma cegueira de si mesma. A rapariga olhava de longe. Depois, com os mesmos gestos lentos, libertou-se do vestido e tudo quanto a cobria. Nua sobre o fundo verde das árvores.
O rapaz olhou uma vez mais o rio. O silêncio assentava sobre a líquida pele daquele interminável corpo. Círculos que se alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde enfim a rã mergulhar. Então, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem enquanto o vulto branco e nu da rapariga recuava para a penumbra dos ramos.
José Saramago. “Objeto quase” – excerto do conto, DESFORRA, págs.135/136 - edição – 2015, da Porto Editora
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