LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO VI
99.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
18.º azulejo
FILHOS DA MÃE
ERA SEGUNDA-FEIRA, A PRIMEIRA DO MÊS. Às segundas, o bar encerrava depois do almoço e, à noite, era ali que o Norberto e Marcel se reuniam. Apenas eles. Num encontro que juntava memórias, remorsos, confissões, discussões e sonhos. Era um ritual. E ambos o cumpriam religiosamente. As divergências entre os dois tinham-se perdido no turbilhão dos acontecimentos que os tiveram como protagonistas activos e entusiastas e, depois, apenas como observadores de dia para dia mais desencantados. Marcel assistia, impotente, como ele próprio dizia, ao “declínio da fraternidade”. Sem ela, a liberdade perdia consciência ética e ficava mercê de quem a tomasse para poder próprio. Essa, aliás, fora sempre a reserva de Norberto ao valor absoluto que o amigo atribuía à liberdade. Só que Norberto via também esvair-se a sua crença na igualdade e na capacidade desta para se impor como limite à própria liberdade.
- É a fraternidade, Norberto, é a fraternidade que importa colocar no centro do debate e que urge recuperar como pedra angular de uma democracia de pessoas – afirmava Marcel, perante o cepticismo de Norberto, enunciando um rol de velhas solidariedades, todas perdidas na corrida do tempo.
- Não os ouves anunciar o fim da História? – perguntava a um Marcel que se recusava a render-se e que o confrontava com a pergunta fundamental:
- E a utopia? Uma qualquer, mas a utopia. Onde fica agora ela?
O que ficava era o silêncio de Norberto e a insistência de Marcel atacando com uma nova interpelação:
- Já desististe de procurar o Peujeot 404?
Tinham começado por se sentarem na mesa do meio. As mesas laterais tinham-se ligado aos nomes dos seus frequentadores e agora parecia que lhes pertenciam, mesmo na ausência dos donos. Geninha, Tumor Anarquista, Poeta Póstumo, Professor, Chinesa, quem os reconhecia como nomes de mesa? E, no fim de contas, essa era a designação que, em letras menores, se exarava nas chapas de cartão que todos ostentavam abaixo da inscrição onde se lia “RESERVADO”. A de Norberto não tinha identificação. Não era uma mesa, era um lugar. Mal ele saía, logo ali se estendia uma toalha de cambraia, cor de vinho, sobre a qual vinha pousar um bojudo vaso de porcelana preservando o canto do Norberto de qualquer utilização alheia. Cedo abandonaram a mesa grande e, depois de duas ou três fracas experiências nas mais pequenas, decidiram passar para o interior de bar, para lá do balcão, para o espaço vedado ao público e que Marcel destinava à administração da casa. Era nessa noite que ali iriam reunir-se pela primeira vez. Marcel colocara no canto mais ao fundo, longe da entrada, uma antiga mesa de camilha. Da garrafeira, escolhera um Beoujolais, ao qual chegara um leve toque refrescante, que enriquecia o tinto daquele ano especial, exibido no rótulo que abraçava a garrafa. Norberto apercebera-se do cuidado com que o amigo procurava enquadrar o encontro daquela noite e decidiu, por isso, tornar-se um cúmplice improvável. Qual não foi, pois, o espanto de Marcel, ao ver entrar Norberto trazendo, dentro de uma esborcelada caixa de cartão, um gasto tabuleiro de damas e as respectivas peças. Nenhum deles sabia jogar.
- É só para ficar em cima da mesa, enquanto falamos. – esclareceu Norberto, a anteceder o abraço longo, apertado, vindo da memória dos tempos, e o convite de Marcel para se sentarem.
Otília regressou da pausa dentro da qual se recolhera por breves momentos. A notícia caíra como uma bomba. O professor Honorato acabara de ser afastado da direcção da escola. Foi o Valdemar que veio trazer a informação. Era cedo. Ninguém saíra de casa. A minha mãe, já de pé, com as chaves do carro na mão, era a mais apressada, mas opinou ainda:
- Não era de esperar outra coisas. Os tempos estão a mudar. É preciso sangue novo, ideias novas. – Com um braço afastou Valdemar, que se postara em frente da porta, e saiu.
- É preciso sangue para quê? – ainda perguntou, sem lograr resposta, Maria Augusta, vinda de dentro.
- Mas, que idade tem o professor Honorato? – indagava, surpreendida, a minha avó.
O meu pai entendeu chegada a vez e explicou que não se tratava de idade cronológica. Os tempos é que eram outros. Falou de ciclos, de novos ciclos, dos que escolheram ficar dentro e têm sucesso, e dos que teimam em continuar fora e ficam para trás.
- Não tem que ver com a idade – repetiu -, antes com o pensamento e com a atitude.
O que eu queria era ouvir o meu avô. E ele sem falar. O Valdemar pedia licença para sair. Tinha de regressar à escola. Viera a correr. Quisera impedir que o meu avô soubesse só quando lá chegasse. Ainda esperou um instante. Também ele o queria ouvir. E o meu avô falou:
- Filhos da mãe.
E voltou para o quarto. …
ÁLVARO LABURINHO LÚCIO, “O Homem Que Escrevia nos Azulejos”, 18º azulejo, págs. 96/100 – 2019, Quetzal editora
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