Chá com Letras Online:Excerto da obra, “As Sombras De Uma Azinheira” - LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO IX



LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO IX
102.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal

Excerto da obra, “As Sombras De Uma Azinheira” de Laborinho Lúcio

… NINGUÉM LHE FALAVA DOS PAIS. A mãe morreu no parto, mas teve uma vida antes disso, um passado, uma história, alguém teria de ter memória dela. O pai desapareceu. Deve ter enlouquecido. Só assim se explica que a acuse da morte da mulher. Mas o que é certo é que esse clima de censura, meio difuso, pairava no ar, como uma maldição sempre latente que atacava a espaços. O tio recriminava então o cunhado pelo desprezo da filha, pelo abandono, pela recusa em aceitar a realidade, enfim, pela insanidade. À tia quase só faltava condenar a mãe de Catarina por ter morrido. Não deixava mesmo de acrescentar que, na sua idade, ninguém insiste em engravidar e dar à luz. É certo que nunca terminava sem um suspiro e um alento, pobre Maria Antónia! Replicava o tio, apontando o dedo ao cunhado por ter sido ele a permitir e a colaborar em tal imprudência. É o que dá a mania das utopias, dizia, a encerrar. As duas avós de Catarina, entretanto desaparecidas, nunca terão sido chamadas a depor em tal justiça, tendo ambas, ao que lhe era dito, manifestado sempre grande ternura por ela. Catarina lembra-o muitas vezes e lamenta que se dê cada vez menos importância à sabedoria dos velhos. Guarda religiosamente, como uma relíquia, a “Carta para Josefa, Minha Avó”, de Saramago, e lê-a vezes sem conta, como se fosse uma oração. Nada daquelas discussões familiares tivera, até então, grande efeito nela. O que, bem vistas as coisas, também já não era coisa natural. Fosse como fosse, os tios eram os pais. Os outros nada lhe diziam, e se a morte da mãe lhe doía como era normal que doesse, não pela saudade, mas pela amputação, a falta do pai, nas circunstâncias que ele criara, não lhe provocava, julgava ela, qualquer amargura.
Raiva, sim. Uma raiva escondida, só minha, dissimulada em público, mas raiva profunda. Nunca consegui, por isso, explicar porque razão, nesse tempo, a presença do meu pai se tornou tão desejada. Não sei se por necessitar dele, se pela vontade de o agredir. Talvez a sua ausência, como homem, estivesse por detrás da minha incapacidade para me encontrar, para me conhecer bem, penso eu agora. Há pessoas assim. Com uma especial queda para acrescentarem problemas aos problemas. Eu sou uma delas. Falar em casa seria criar mais uma complicação. O meu tio detestaria a ideia, a minha tia pôr-se-ia a sonhar com uma aproximação impossível, e eu acumularia mais uma acusação.
Por esse tempo, Catarina não se sentia tocada pelos apregoados méritos da psicanálise.
É verdade. Até nisso era diferente. Algumas colegas minhas tinham-se rendido, como se fosse moda, e era com vaidade mal disfarçada que anunciavam aos quatro ventos que faziam psicanálise. Elas e as mães tinham escolhido o psicanalista de entre as novidades do seu tempo e, seguras de si, comparavam métodos e avaliavam melhoras. Enfim, sem solução à vista, socorri-me, uma vez mais, do Diogo. E foi com ele que iludi o tempo que me separava da faculdade. Falávamos de tudo. Não havia segredos entre nós. Apenas aquele. Afinal, o segredo que eu mais precisava de partilhar.
Diogo ia para Direito. Entusiasmava-o a vida diplomática:
- Acho que vou seguir as pisadas do meu tio.
- Qual deles? - perguntou Catarina.
- O irmão da minha mãe. É diplomata de carreira e, ao que parece, muito bem cotado nas Necessidades.
Catarina veio a conhecê-lo. Diogo era muito parecido com ele, quer no físico, quer no carácter. …
Álvaro Laborinho Lúcio, “As Sombras De Uma Azinheira”, págs. 85, 86, 87 – 1.ª edição, Fevereiro 2022 QUETZAL






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