LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO IV
97.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
14.º Azulejo
PENSAMENTO OU MALDIÇÃO
COM O CENTRO DESOCUPADO E AS MESAS DO LADO entregues à sonolência dos frequentadores habituais, Marcel tinha todo o tempo para se concentrar em Norberto, no seu canto ao pé da janela, e a trama que aí nascia, com Otília na Protagonista. O bar tinha para ambos o valor de um talismã. Entre os três, não havia mais espaços vazios. Formavam um só corpo, e a vida própria de cada um não era mais do que uma parcela da vida de todos. Conversavam apenas trocando olhares, umas vezes em redondo, no passeio pelas mesas alinhadas junto à parede, outras a direito, trespassando o grupo reunido na mesa grande do meio. Quantos gestos imperceptíveis, quantos discretos sinais não bastaram para dar corpo a um desabafo, partilhar um lamento, para dar ternura a uma cumplicidade. O bar era o lugar que haviam escolhido para prosseguirem a busca permanente de cada um no outro. Nos primeiros tempos, replicava o ritmo, a alegria e o desassossego que enchiam a cidade. Vinham às levas, umas atras das outras, e cantavam, e brindavam a todos os futuros nascidos da imaginação de cada qual. E, quando saíam, antes dos outros chegarem, ninguém sabia adivinhar o lugar das mesas, dispersas numa desarrumação de uso sem regras e desobediente à tirania da forma. Marcel fizer do espaço uma galeria de arte. Da sua arte. E com o rodar do tempo, a sua imaginação criadora ali trazia a pintura, a tapeçaria, a azulejaria, a escultura. Norberto rendera-se à poesia que, em curtas estrofes, escritas em azulejos, expunha nas paredes do bar. Marcel exultava. Fora a vida que viera juntar liberdade, fraternidade e igualdade. Tudo em resultado do triunfo da liberdade.
- Vê, Norberto – dizia ele. – Vê como todos dão vivas à liberdade. Vê como andam livres a palavra e o pensamento.
E Norberto exultava com ele. Aquele não era tempo para dissensos.
Otília fizera uma pausa longa depois da última história que o avô lhe contara. Norberto limitou-se a olhar para Marcel, uma vez mais, antes de percorrer as paredes do bar. Lá estavam Maria Eugénia, o Tumer Anarquista e, acabado de chegar, o Poeta Póstumo. De cabelos desalinhados, caídos pelas costas, logo abaixo dos óculos de aros pretos de lentes duvidosamente graduadas. Afirmara que escrevia para a posteridade. Não permitia que os poemas fossem conhecidos antes da sua morte. Assim ficou para todos, o Poeta Póstumo.Chegava com um imenso maço de folhas, que todos adivinhavam repletas de versos. Sentava-se, acenava para Marcel, que se chegava para ouvir pedir, em voz baixa, um café e, quase em segredo, um bagaço. Depois, de lápis em punho, voltava-se para o rio, que corria defronte, do outro lado dos prédios que davam margem à rua, ao encontro das musas comprometidas com ele nesse pacto macabro que entregava à morte o início da sua saga de poeta. Lá estavam. Só o Professor e a Chinesa não tinham chegado ainda. Muitos vinham dos primeiros tempos. E estes foram ficando. Primeiro, quando a massa se desfez e ainda abundavam os residentes, continuaram a ocupar a mesa grande. Os outros haviam de voltar, diziam, julgando acreditar que assim seria. Depois, pouco a pouco, perdidas as ilusões foram-se isolando, desligaram-se uns dos outros, até acabarem por passarem para as mesas em redor. Então, Norberto fitou Marcel.
Era evidente. Ambos tinham feito o mesmo percurso. Tinham focado tão próximos. E, ali chegados, ambos temiam que os seus caminhos se distanciassem. A breve trecho, o bar, o seu bar, iria reproduzir o desenho de Marcel. E Norberto carregou o olhar. Marcel aguardava, na expectativa. E a interrogação atravessou o ar. Pensamento ou maldição? O que revelava o desenho de Marcel? Foi a Otília que quebrou a linha que ligava, em fogo, os olhares de Marcel e de Norberto.
- Com a morte da minha avó, o meu avô não tardou em voltar para a “casa velha”. Ia ser ali, na mesa da janela à esquerda da porta quando se entra, que ia nascer uma obra nova. O bar voltaria a animar-se. Marcelo deixou o balcão e atravessou a sala. Levava na mão a décima cerveja.
ÁLVARO LABURINHO LÚCIO, “O Homem Que Escrevia nos Azulejos”, págs. 77/79 – 2019, Quetzal editora
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