Chá com Letras Online: LEVANTADOS DO CHÃO - LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO VIII



LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO VIII
89.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


LEVANTADOS DO CHÃO

“…Maio é o mês das flores. Vai o poeta em seu caminho, à procura das boninas de que ouviu falar, e se não lhe sai ode ou soneto, há de sair quadra, que é saber mais comum. O sol não está a doidice de julho e agosto, corre mesmo uma fresca aragem, e onde quer que a gente ponha os olhos, daqui deste alto ponto que em tempos doutro tempo terá servido de atalaia, tudo são verdes searas, não há espetáculo mais capaz de desafogar as almas, só por dureza de coração se não sentiria o afago da felicidade. Olhando a esta mão, o mato é um jardim sem rega nem jardineiro, são tudo plantas que tiveram de aprender à própria custa os modos de conciliar-se com a natureza, com esta pedra bruta que resiste à penetração das raízes, e talvez por isso, por esta energia obstinada em lugares donde se afastam os homens, aqui onde a luta é entre o vegetal e o mineral, são as essências tão penetrantes, e quando o sol escalda a colina, todos os perfumes se abrem e aqui infinitamente adormecidos, talvez morrendo com o rosto sobre a terra, enquanto as formigas, como os cães levantando a cabeça, avançam protegidas por máscaras de gás, pois ali é também o seu lugar de viver.
São poesias fáceis. Estranho é que não se vejam homens. As searas crescem, verdíssimas, o mato está em seu sossego e aroma, e tornando a reparar, já o trigo perdeu a sua tenra frescura, uma minúscula gota de amarelo em tão grande espaço, quase não se nota, e os homens, onde estão os homens que os não vemos por estas paisagens tão felizes, afinal não é verdade serem como os servos da gleba, atados iguais a cabras a uma estaca para só ali comerem e do que houver. Grandes são afinal estes ócios enquanto o trigo cresce, deitou um homem a semente à terra, e se o ano favorece, estende-se a perna, chamem-me quando for a hora de ceifar, Não se percebe portanto que este maio de flores seja mês de cara fechada, não falamos do tempo, que está bonito e promete, mas destas caras e olhos, boca de carranca. Não há trabalho, dizem eles, e se a natureza canta, bom proveito lhe faça, que para cantar não temos nós gosto.
Dêmos nós um passeio ao campo, subamos ao monte e de caminho deu o sol nesta pedra…”
JOSE SARAMAGO – “Levantados do chão”, (excerto, págs., 205/206, 22.º edição, 2021- Porto Editora



Imagem in: https://www.awm-portugal.com/.../alentejo-lago-alqueva.../




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