LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO V
85.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
Também conheci Jorge de Sena. Não muito bem (se alguém se pode gabar de tal), mas por aquela via que talvez dê para conhecer melhor: as cartas. Contadas, foram pouquíssimas as falas que trocámos. Escritas, são larguíssimas dezenas (ou centenas?) as páginas que de um lado e de outro se escreveram. Eram elas de razão editorial, mas quem alguma vez recebeu carta de Jorge de Sena, sabe que nela sempre esteve, além do motivo imediato que a justificasse, um outro motivo que em todas obsessivamente se exprimia: o autor delas. Diz-se que Jorge de Sena era vaidoso, egocêntrico, parece que que mesmo megalómano. Talvez fosse tudo isso e muito mais, talvez centrasse em si quanto de defeitos a espécie humana tem vindo a colecionar: seria uma outra singular forma de grandeza. Mas Jorge de Sena usava o admirável impudor de não poupar precisamente as palavras que mais riscos comportassem. E, pelo que julgo saber, nunca Jorge de Sena terá sido tão franco, tão brutalmente afrontador, como nas cartas que escreveu. Se algum dia se publicar a correspondência de Sena, receio bem que metade da catedral literária portuguesa vá pelos ares. E se é de revulsivos desses que estamos a precisar, temos a medicina à mão.
Este artigo não é de necrológio, muito menos de elogio fúnebre. Há evidente indecência no habitual derramar de louvores e lamúrias, quando morre alguém, que justamente foi para o outro mundo com a boca amarga de repugnância por incensadores póstumos e carpideiras. A morte de Jorge de Sena é uma vergonha para Portugal. Não foi português o cancro que o matou, mas é portuguesa a indiferença que torna as mortes mais dolorosas. Não sei que últimas palavras foram as de Jorge de Sena, se teve tempo e paciência de as ditar para a História, se não preferiu o desprezo do silêncio precisamente para calar palavras de desprezo. Se uma carta puder ter escrito, estou que não seria uma carta, mas um rugido. Mas Portugal é um país de surdos, depois de ter sido um país de mudos.
Revejo Jorge de Sena, exatamente há um ano, acompanho na televisão o seu gesto de provocação desesperada, na imprecação lançada contra os ouvidos rolhados dos espectadores de perto e de longe, e pergunto a mim mesmo, quantos Jorges de Sena precisarão ainda de morrer para que, enfim, esta terra comece a valer pelo que saiba e cultive, e não pelo que de si mesmos cuidem os atletas da mediocridade nacional que foram e desgraçadamente continuam a ser os que em nosso nome falam. Na Guarda, Jorge de Sena tocava a rebate, possesso, quase patético, algumas vezes, (que importância tem isso?) roçando o ridículo para melhor insultar a corte que o ouvia. E, feito o seu número, tendo dito muito mais do que se lhe pedira, tendo posto diante de um país inteiro a sua profunda ferida (sua, de ambos), foi-se ao que lhe restava de vida, um brevíssimo ano, para continuar o que sempre fizera: escrever. Se algum dos portugueses de agora encarnou dramaticamente a dignidade de ser escritor, esse foi Jorge de Sena. Isso que Jorge de Sena soube ser melhor do que ninguém, e não falando agora no que a sua obra representa, é provavelmente a grande lição que aos escritores portugueses conviria aprender. Ou não mereceremos sequer o pão que comemos.
Em geral, quando morre um escritor, um artista, a benevolência coletiva acode a pedir que se esqueça o homem e se fale da obra. Vem isso da velha impregnação cristã do perdão dos pecados, e do pequenino orgulho de nos julgarmos cada um de nós senhores desse perdão, só porque continuamos vivos. No Caso de Jorge de Sena, prefiro não esquecer o homem que mal conheci. Prefiro refletir sobre os seus defeitos de carácter, apurar razões que não se deem por satisfeitas com as banais (mesmo rigorosas) explicações que a psicanálise dá. E ver se são defeitos. Ver se não se trataria antes de uma hipertrofiada consciência do valor do homem, da acção transformadora do homem. E concluir, enfim, se este patriarcal país, se esta pastosa e desvertebrada classe intelectual (em sentido lato) que do pais melhor ou pior se vai servindo, não estará antes precisando de adquirir urgentemente alguns dos defeitos de Jorge de Sena. Se não formos capazes de lhe continuar a obra, ao menos prolonguemos o homem.
Tem agora a palavra os críticos, os historiadores, os que descompõem e recompõem. Por mim, que não chego a tanto, tirarei da obra de Jorge de Sena o que for capaz de receber e manterei os ouvidos bem abertos à sua furiosa voz, à cáustica insolência, ao meu infinito gemido de ser português e desprezado.
JOSÉ SARAMAGO – Folhas Políticas – SENA - págs. 1O4/107, 2015 - 3.ª edição, Porto Editora.
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