LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO IV
84.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
26 DE ABRIL
De comboio para Springfield, viagem tranquila, através de campos de pouca beleza e cidades de nenhuma. Repete-se o lixo ao longo da via-férrea, tão continuadamente, que acabei por ter olhos só para ele… Esperava-me o professor José Ornelas, da Universidade de Massachusetts, em Amberst. Almoçámos num restaurante italiano, ao som de fados da Amália Rodrigues: a expensão da cultura lusíada navega de vento em popa, o escritor não fazia cá falta. José Ornelas diz-me que sempre que há portugueses sai o disco. À tarde foi a conferência, que saiu na forma do costume e portanto também com alguma coisa de disco… José Ornelas e Glória, sua mulher, porto-riquenha, deram-me de jantar em sua casa. Têm uma filha, Ariana se chama, de uns doze anos, que tocou um pouco no piano depois do jantar. Nervosa diante da visita, enganou-se algumas vezes. Animámo-la todos, como devíamos, mas não se conformou. Quando se despediu para dormir (a hospitalidade incluía a pernoita), ela fingiu que estava à procura de uns sapatos num armário, e foi de joelhos no chão, com a cabeça metida lá dentro, que me deu as boas noites, numa voz que não podia disfarçar as lágrimas. Pobre Arianazinha, ali perdida no meio do seu desgosto, a que só o tempo saberá dar remédio. De quanto tempo vai necessitar ela para esquecer? horas? Uns dias? Quem sabe se daqui a muitos anos não lhe doerá ainda esta recordação?
JOSÉ SARAMAGO – Cadernos de Lanzarote – diário III, 26 de Abril-1996, págs. 106/107, Editorial Caminho.
Imagem: Universidade de Massachusetts
Imagem: Universidade de Massachusetts
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