LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO I
81.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
DIÁRIO I
29 de Novembro
O vento corre em todas as direcções nas ruas de Manchester, mas o frio avança numa direcção só: a dos ossos de qualquer ser vivo que se atreva a pôr o pé nestas calçadas. Enquanto esperávamos Luís Vilela, que haveria de levar-nos a uma transida volta pela cidade, entrámos no museu, pequeno, desarrumado e em obras. Se toda a pintura que têm é que está à vista, a visita não vale a pena, salvo para escapar às asperezas do tempo de Inverno. Curioso, no entanto, é observar como os pintores ingleses menores do século XIX e dos primeiros anos deste tratavam o nu feminino: por baixo de uma matéria lisa que parece proteger o corpo das concupiscências do pincel, nota-se como m sensualidade mal refreada, capaz de cevar-se furiosamente no modelo à menor distracção. Foi talvez esta duplicidade (esta e outras) o que caracterizou a Inglaterra vitoriana e os seus tortuosos modelos de viver, tanto os públicos como os subterrâneos.
Conferência na Witworth Art Gallery. Com surpresa geral, e a minha maior que a de todos, havia mais de cem pessoas a assistir. Entre elas os Alexandre Pinheiro Torres e o Eugénio Lisboa, idos, respectivamente, de Cardiff e de Londres. E havia gente que tinha ido de Leeds, de Liverpool, de Bermingham. O convidado Saramago foi apresentado por Clive Willis, excessivamente, como é de regra nestes casos. Li com satisfação da assistência, aquele texto já publicado, “Do canto ao romance, do canto ao romance”. Jantámos depois, Pilar e eu, em casa de Jeremy Lawrance, um simpático, caloroso e competente medievalista que, irresistivelmente, a propósito de tudo, nos dava sinais de quanto teria gostado de viver na época em que se especializou. Jeremy resigna-se a este tempo, enquanto espera que o mundo, pelo andar que leva, entre numa Idade Média.
José Saramago, CADERNOS DE LANZAROTE - diário I- 29 de Novembro de 1994, págs. 163/164, Editorial Caminho.
30 DE NOVEMBRO
Quando o Prémio Vida Literária me foi entregue, disse, no discurso de agradecimento, que, não havendo faculdades de Literatura que produzam escritores como outras produzem médicos, advogados ou engenheiros, só resta aos aspirantes ao ofício de escrever tentar aprender com o trabalho de quem antes deles escreveu – e que essa é boa maneira. Pelos vistos, estava enganado. Hoje, aqui em Manchester, na universidade, tive um encontro com uns quantos escritores (alguns, novos, outros não tanto), pós-graduados, em vias de preparação de tese. Ora, a tese (ainda não recuperei da estupefacção) constituirá na redacção (não vejo outro modo de chamar-lhe) de um romance… Manifestei o meu desconcerto a Giovanni Pontiero, que se limitou a encolher os ombros e a pôr em mim uns olhos piedosos: compreendi que também ele não concordava com a peregrina ideia de atribuir um título universitário tão antiacadémica como é a escrita novelesca. Assim confortado, respondi a perguntas: creio ter justificado, o meu próprio direito a ser escritor, embora não titular.
JOSÉ SARAMAGO – Cadernos de Lanzarote – diário I, 30 de Novembro de 1994, págs. 164/165, Editorial Caminho.
https://www.josesaramago.org/
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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