CLARICE LISPECTOR II
75.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
DOÇURA NA TERRA
Não sei se muitos fizeram essa descoberta – sei que eu fiz. Também sei que descobrir a terra é lugar-comum que há já muito se separou do que exprime. Mas todo o homem deveria em algum momento redescobrir a sensação que está sob descobrir a terra.
A mim aconteceu na Itália, durante uma viagem de trem. Não é necessário que seja a Itália. Poderia ser em Jacarepaguá. Mas era a Itália. O trem avançava e, depois de uma noite mal dormida em companhia de uma sueca que só falava sueco, depois de uma xícara de café ordinário com cheiro de estação ferroviária - eis a terra através das vidraças. A doçura da terra italiana. Era começo de primavera, mês de março. Também não precisaria ser primavera. Precisava ser apenas – terra. E quanto a esta, todos a têm sob os pés. Era tão estranho sentir-se viver sobre uma coisa viva. Os franceses, quando estão nervosos, dizem que estão sur le qui-vive. Nós estamos perpetuamente sobre o que viver. E à terra retornaremos. Ah, porque não nos deixamos descobrir sozinhos que à terra retornaremos: fomos avisados antes de descobrir. Com grande esforço de recriação descobri que: à terra retornaremos. Não era triste, era excitante. Só em pensar, já me sentia rodeada desse silêncio da terra. Desse silêncio que a gente prevê e que procura antes do tempo concretizar.
De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E porque não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra?
E pelo facto de tudo ser feito de terra – que grande futuro inesgotável nós temos. Um futuro impessoal que nos excede. Como a raça nos excede.
Que dom nos fez a terra separando-nos em pessoas – que dom nós lhe fazemos não sendo senão: terra. Nós somos imortais. E eu estou emocionada e cívica.
NÃO ENTENDER
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mão não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
*Clarice Lispector – TODAS AS CRÓNICAS – “Doçura de terra / Não entender”, pág. 149150 - 2018, Relógio D´Água Editores *
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
75.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
DOÇURA NA TERRA
Não sei se muitos fizeram essa descoberta – sei que eu fiz. Também sei que descobrir a terra é lugar-comum que há já muito se separou do que exprime. Mas todo o homem deveria em algum momento redescobrir a sensação que está sob descobrir a terra.
A mim aconteceu na Itália, durante uma viagem de trem. Não é necessário que seja a Itália. Poderia ser em Jacarepaguá. Mas era a Itália. O trem avançava e, depois de uma noite mal dormida em companhia de uma sueca que só falava sueco, depois de uma xícara de café ordinário com cheiro de estação ferroviária - eis a terra através das vidraças. A doçura da terra italiana. Era começo de primavera, mês de março. Também não precisaria ser primavera. Precisava ser apenas – terra. E quanto a esta, todos a têm sob os pés. Era tão estranho sentir-se viver sobre uma coisa viva. Os franceses, quando estão nervosos, dizem que estão sur le qui-vive. Nós estamos perpetuamente sobre o que viver. E à terra retornaremos. Ah, porque não nos deixamos descobrir sozinhos que à terra retornaremos: fomos avisados antes de descobrir. Com grande esforço de recriação descobri que: à terra retornaremos. Não era triste, era excitante. Só em pensar, já me sentia rodeada desse silêncio da terra. Desse silêncio que a gente prevê e que procura antes do tempo concretizar.
De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E porque não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra?
E pelo facto de tudo ser feito de terra – que grande futuro inesgotável nós temos. Um futuro impessoal que nos excede. Como a raça nos excede.
Que dom nos fez a terra separando-nos em pessoas – que dom nós lhe fazemos não sendo senão: terra. Nós somos imortais. E eu estou emocionada e cívica.
NÃO ENTENDER
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mão não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
*Clarice Lispector – TODAS AS CRÓNICAS – “Doçura de terra / Não entender”, pág. 149150 - 2018, Relógio D´Água Editores *
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