LEITURAS DE LUÍSA COSTA GOMES II
72.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
Costureirinha (uma lenda Lisboeta)
Foi em 1933 que Clotilde chegou a Lisboa, para servir numa casa de família. Ponderou-se o que havia de fazer, mas não havia muita esperança, a começar seria, como de tradição, pelo primeiro degrau da escada. Nova, saudável, ignorante das ruas e comércios de Lisboa, falando, quando falava, com sotaque beirão intransponível, logo convenceu os senhores condes do Outeirinho que não servia senão para as grossas tarefas domésticas.
Clotilde não tinha sonhos e não tinha ambições. Se não levava pancada, já andava contente. E se, para cúmulo, lhe davam de almoçar em dias certos, não pedia mais nada à porca da vida.
Deve-se começar a suspeitar da existência de um filho nesta família. Há-o, de facto. Há mesmo dois filhos. O varão, recentemente casado com os bens de uma herdeira impertinente, vivia esplêndido na Lapa e pouco aparecia na casa paterna. Dir-se-ia que o êxito da família que começara há pouco em Octávio Outeirinho, primeiro a usar o título de conde, se encarnava por inteiro nesse macho de sucesso. Mas não tivera oportunidade de vislumbrar a Clotilde a lavar as escadas ou em interessantes equilíbrios sobre escadotes. Meramente por isso lhe escapara – por ele já não estar presente.
O filho segundo, Orlando, coleccionava fracassos, bebia, jogava e perdia. Andava metido com rufias e mulheres da vida. Dizia que tinha o sangue quente, não pensava antes de agir. Também não pensava depois de agir. Privado da afeição de seu pai ao fim de um certo tempo, vivia de querelas e de rixas. Possuía um vocabulário de quatro palavras e três delas não se podiam reproduzir em público. Em resumo, era o deserdado, a ovelha ranhosa da família.
Mas tinha um fraco pela Clotilde, que não se civilizara realmente nesses anos lisboetas, e ainda que esse fraco não bastasse para o redimir completamente, suavizou-lhe o carácter e fez dele um homem ligeiramente melhor. Alcançou extrair-se da casa da família e alugou um segundo andar com dois quartitos onde passaram a viver. Embora temporariamente animado de princípios altruístas, entre eles a generosidade, Orlando não possuía nada de seu e, logo, num assomo de clarividência, se deu conta do sórdido da situação a que era difícil escapar. Decidiu tomar medidas. Emigrou para Angola, a fazer fortuna.
Clotilde chorava muito. Chorava sobre os trabalhos de costura que fazia para se sustentar, sobre a máquina de costura, presente de Orlando – e ainda sobre o berço de Vasco, segundo presente do pai remoto. Chorava dias inteiros à espera de notícias, de cartas. Assim contraiu uma tuberculose, do género mortal, acrescentando agora ao choro e ao ruído do pedal da Singer uma tosse que ia mudando de tonalidade à aproximação da morte. Já quase no fim, Clotilde recebeu a visita de um emigrante que regressava de Angola com notícias do Orlando. Dizia que o ausente ainda não tinha feito fortuna, mas já se empregara na Companhia das Águas como escrevente e ao fim de dois anos, se tudo corresse bem, abria-se a possibilidade de uma promoção. O emigrante relatou sem se comprometer que Orlando estava muito bem de saúde, mas que mandava dizer que antes de sete anos não lhe punham na metrópole a vista em cima. Já passavam três anos sobre a despedida dos amantes e Clotilde disse adeus ao emigrante, mandou o menino para casa da vizinha, rompeu a soluçar e cuspiu aa última gota de sangue.
Hoje ainda, em Lisboa, diz-se, quando se ouve o roncar das canalizações, que é a costureirinha, o fantasma de Clotilde, que procura, pelo vazio dos canos, o seu Orlando, empregado na Companhia das Águas.
GOMES, Luísa Costa (2001). Contos Outra Vez. 1.ª Edição, APE – Associação Portuguesa de Escritores, [Lisboa]. Conto: Costureirinha (uma lenda Lisboeta), págs. 55-57.
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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