Chá com Letras Online: TEIA DE ARANHA - LEITURAS DE MIGUEL TORGA XXXI



LEITURAS DE MIGUEL TORGA XXXI
67.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


TEIA DE ARANHA

O tempo em S. Cristóvão anda devagar. As terras são cascalho puro, de maneira que é preciso dar prazo às raízes para roerem o granito até fazerem de uma areia um grão de cevada ou de centeio. Um ano, ali, são trezentos e sessenta e cinco dias bem medidos. E as pessoas que lá moram, afeitas a horas longas, têm uma paciência de relojoeiro, cheia de mil cálculos e de mil ponderações. Exactamente como nas leiras, onde a gente vê semanas a fio o mesmo pé de milho parado, meditativo, enigmático, a aloirar encobertamente a sua espiga, assim nos homens mais pasmados, mais lentos e mais metidos consigo, anda às vezes uma resolução secreta a criar e a amadurecer. E saem obras tão perfeitas destas medições, tão acabadas na concepção e na forma, que só o dedo da providência, porque aponta o céu, é capaz de lhes evidenciar os defeitos de fabrico. Mas mesmo assim são às vezes precisos anos para que Deus descubra a fenda do cântaro. Tal é a perfeição dos artífices de S. Cristóvão!
No caso do tio Artur, a façanha foi de pura prestidigitação. Na altura exacta em que o rapaz, trabalhador e zeloso como sempre, murava o lameiro da ribeira, o velho sumiu-se como por encanto. Viram-no à noitinha ir buscar a jumenta ao monte da relva e trazer-lhe depois o feno do palheiro da Chã, mas daí por diante os seus passos apagaram-se sem deixar rasto. Essa noite, embora de Agosto, foi escura e comprida, a condizer com a manha e a perseverança do lugarejo. E nela nem se ouviram gemidos, nem passos suspeitos, nem uivo de cão, nem pio de coruja. Nada. Ao cantar do galo, quando a aldeia acordou, havia no ambiente a mesma calma serenidade do dia anterior. As mulheres acenderam o lume e fizeram o caldo, os pedreiros, na obra do Artur, assentaram os alicerces do novo troço de parede, e só tarde, quase à hora do almoço, é que a jerica, cansada do esquecimento em que o dono a deixara na loja, deu de lá um impaciente sinal de enfado. E foi através desse aviso animal que S. Cristóvão compreendeu que o Bento Caniço, habitualmente tão madrugador, não acordara ainda e que o melhor seria bater-lhe à porta.
Bateram, realmente, entraram, e não há dúvida que durante o sono lhe acontecera qualquer desgraça. De que natureza, é que ninguém sabia.
A casa não estava roubada, não havia vestígios de luta nem violência, reinava uma tal melancolia no sepulcro vazio, que o dono parecia ter subido ao céu.
De busca em busca, de suspeita em suspeita, de interrogatório em interrogatório, o mistério cada vez se adensava mais. O Caniço, nem mau nem bom, como era de regra no lugar, se não tinha amigos, também não tinha inimigos. Solteirão, o que lhe pertencia, embora de tentar, fizera-o de há muito por escritura ao Artur, seu único sobrinho. De forma que ninguém descortinava maneira de encontrar o fio à meada.
Ora, por mais absurdo que seja o mundo, uma criatura não desparece da noite para o dia sem fazer pensar. O homem necessita de sentir uma segurança vital a longo prazo. A morte é aceite por todos como senhora de baraço e cutelo, mas a esperar pelo freguês lá muito longe, numa encruzilhada que tem vários desvios. Por isso, o caso de Bento Caniço, evaporado da terra por obra e graça, desencadeou em S. Cristóvão um vendaval de suspeitas e investigações. Tudo inútil. Os dias passaram, as raízes de várias sementeiras digeriram os carolos de várias colheitas, e o problema cada vez mais intrincado.
De todos os zelos pela claridade daquele sumiço, o maior era, como de justiça, o do Artur. Honrado homem no conceito da aldeia, bom cristão nos anais da igreja, dedicado à família, não houve passo que não desse, esforço a que se poupasse, a ver se conseguia decifrar o enigma. E, quando verificou que de maneira nenhuma podia valer ao corpo do tio, tentou ao menos salvar-lhe a alma. Nesse capítulo, até o padre Maurício reconheceu que a piedade do Artur roçava pelo exagero. Vinte missas em S. Cristóvão, já são missas! Juntando ainda o ofício a sete vozes, com que mandou encomendar a sombra do defunto, subiu-lhe a coisa a conto e pico, maquia de considerar.
E foi assim, dignificada na diligência vã dos estranhos e no amor devotado do sobrinho, que a memória de Bento Caniço desbotou. Outras mortes vieram, desta vez mais claras e menos perturbadoras, outros interesses ocupavam a atenção lenta e ruminadora de S. Cristóvão, e outras missas de sufrágio fizeram esquecer as vinte do Artur. Apenas as não rezou o padre Maurício. Chegara também no céu a sua vez. E da terceira indigestão do ano, rebentou. Venceu a dos pepinos e a dos pimentos, mas nas dos melões o fígado não pôde mais.
Era um homem bonacheirão e aberto, da boca de quem saíam, de vez em quando, confidências indiscretas que criavam o pânico no pequeno mundo de silêncio que pastoreava. Talvez para compensar a mudez colectiva, falava ele. E cada paroquiano ou arrostava o ano inteiro com o pesadelo de se não ter descosido na desobriga, ou escarolava a alma publicamente através daquele altifalante. Mas morreu e foi substituído por um colega que não lia pela mesma cartilha. Muito mais comedido nas refeições e na língua, o novo prior tinha ideias unificadoras do animal com o meio e punha-as em prática. Seco de carnes, depressa compreendeu que a voracidade palreira do antecessor não estava de acordo com a magreza sisuda do chão de S. Cristóvão. De maneira que fartava o corpo no confessionário dos pecados da aldeia e do que ouvia nessas horas indetermináveis de cochicho não vinha nunca sinal ao mundo. Fechado na batina negra, que o amortalhava do pescoço aos pés, acabava de descarregar as consciências da povoação enigmática como um cipreste. Até parecia que nascera ali e mamara a sorna germinação da terra!
No apogeu do seu reinado, chegou a vida do Artur ao fim. Apesar de moroso, o tempo vai batendo à porta de todos em S. Cristóvão. E, quando o Artur menos esperava, soou-lhe também a hora, e foi preciso prepará-lo para a grande viagem com a extrema-unção.
Morreu lúcido e é de crer que despejou o saco, na confissão demorada que fez. Pelo menos o padre Lobato, no fim, deu-lhe a absolvição, ungiu-o, e acompanhou-o depois à última morada.
- Requiescat in pace…
- Amen.
Honrada, a mão do Paivoto deixou então cair sobre o caixão as pazadas de terra gorda do cemitério, na comoção devida a uma alma lavada.
- Que lhe seja leve… - choramingou a Ester.
- Se fosse no Inverno, era pior…- gracejou o Jacinto.
Choravam e riam como faz a vida. Mas havia neles o sentimento pungente da negrura do momento, porque ao cabo e ao rabo o defunto fora um homem, e urdia a sua teia de mortal em tudo de acordo com os usos e costumes de S. Cristóvão.
A prova disso é que o próprio Criador, se lhe quis descobrir as malhas caídas, teve de arranjar na serra uma trovoada desmedida e fazer crescer as águas da ribeira como no dilúvio. Só assim a corrente pôde levar o muro do lameiro e mostrar sob os alicerces o esqueleto branco de Bento Caniço – o que restava do corpo inteiro que o sobrinho ali enterrara na noite do crime, e sobre o qual os pedreiros, no dia seguinte, acamaram pedras inocentes.

Miguel Torga, NOVOS CONTOS DA MONTANHA – “Teia de aranha”, págs.181/186 – 19.º edição – 2002, Publicações D. Quixote.


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