Chá com Letras Online: OS HOMENS QUE FALAM - LEITURAS DE TOMAZ DE FIGUEIREDO


LEITURAS DE TOMAZ DE FIGUEIREDO
65.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal



OS HOMENS QUE FALAM

“Falar é fácil!” - eis um princípio muito frequentemente apregoado, um princípio dir-se-ia que encerrando experiências seculares, nunca desmentidas pelos factos. Forçosamente, segundo ele, de nada é capaz quem fala, antes apenas demonstra incomensurável e balofa vaidade, só merecedora de troça e desdém. Ai dos que falam!, de contínuo arrumados no rol dos parlapatões, pelas chamadas pessoas de são juízo, pelas que “sabem as coisas”, agudamente críticas. Quem quer que seja capaz de alguma realização, dono de uma ideia feliz, cumpre-lhe ser mudo e concentrado, guardar essa ideia bem sonegada no crânio: - modestamente. Claro está: - modestamente, para até não magoar as pessoas modestas com o insulto da sua presunção.
Se fala – zás -, se a apregoa e defende, já a ideia não pode ser aproveitável, já tem que ser tôla. Não há dúvida de que somos um país de pessoas extraordinariamente modestas.
“Falar é fácil”.
Em abono de tal princípio, é corrente, é da praxe ouvir citar aquele provérbio do “cão que ladra não morde” (ai não, que às vezes não morde!), o de “quem muito fala pouco acerta”, quando não o malcriado “não vejo lura de onde saia coelho”. Ah, que se não fossem os provérbios e a sabedoria das nações, cristalizada em narizes-de-cera sempre aplicáveis, - pois que há ditos da sabedoria das nações para quando chove e quando está sol… - não sei como os eunucos do pensamento conseguiriam despegar um oitavo de raciocínio das pobres cabeças chochas! Inútil discutir, batalhar com tais definidores da inteligência e possibilidades alheias. Se têm rebelde o argumento, pesado o discorrer, têm o fácil encolher de ombros, o fácil “ora, ora”, o facílimo berro, o ultra facílimo sorriso superior e protector, esmagador de insolências.
Chamam eles insolências à ambição de pensar, de que têm o monopólio. Chamam ainda impertinência à defesa de qualquer ideia que não seja comum e já sorvada, de uma ideia pessoal, não aceitando a possibilidade de ideias por parte do senhor conhecido que veste como eles casaco e calças. Só os antigos e os vindouros, os desconhecidos e estrangeiros são capazes de ter ideias. Além deles, claro está! “Falar é fácil – repetem. E nisto se ficam, nisto se ficarão, até sobre eles cair a terra do cemitério e o esquecimento. - Pesado esquecimento, mais pesado que a terra do cemitério!
“Falar é fácil”, e aduzem casos e exemplos: - fulano, que tinha a mania disto assim assim, beltrano, convencido que tinha encontrado a solução do problema tal, - uns parvos, no fim de contas, que de parvos não passavam, como o tempo demonstrou…
Quantas ideias belas, quantas soluções que ainda não topaste e desesperadamente procuras, ó Humanidade céptica, não terão levado para a cova, tantos a quem recusaste ouvir?! Tantos que falaram…
Pois digamos, gritemos aos cavalheiros dicazes, que só pela acção as ideias se efectivam. E que não há outra forma de as anunciar, senão pelas palavras.
Digamos-lhes, usando de imagens acessíveis ao seu bronco entendimento, que embora seja de sua natureza apagar o fogo, só pode a água apagá-lo desde que lançada sobre ele. Ou, então, que por uma porta fechada é impossível passar. Digamos-lho, embora acudam que os tais fulanos e beltranos que se gabavam de ter ideias, se alguma porta os impedia, tinham obrigação de a arrombar, argumentando nós, sempre com imagens, que não é exigível ao astrónomo, para descobrir uma nova estrela, que tenha também inventado o telescópio… Ou, mais comezinhamente, que não é preciso ser sapateiro para ter direito a andar calçado. Ocorre.me um exemplo – e que exemplo! – de homens que falaram: o exemplo de António Enes.
António Enes usava um paisaníssimo jaquetão e era jornalista de palavras duras. Apenas.
Um dia, quando a nossa província de Moçambique, em verdade já mal podíamos dizê-la nossa, um dia, quando os técnicos não atinavam com o que era preciso fazer, António Enes falou sobre o assunto. Falou e disse o que no seu julgar devia ser feito. E expôs o plano.
Que horror, senhores modestos! António Enes cometeu o crime que não perdoais, o crime de falar! O grande vaidoso, gabou-se!
Devia portante ficar estabelecido, segundo o vosso critério - sapientíssimo critério! -, apoiado no filosófico “de palavras está o mundo cheio…”, que tal homem era um nulo.
Pois o caso é que falou, e sem vos pedir licença, ou, antes, aos vossos dignos avós espirituais. Falou, e de tal jeito, que logo o encarregaram de pôr em prática o seu plano. Todos sabem o resultado, e nem eu aqui pretendi traçar um quadro histórico. Pretendo é perguntar, e não enfado mais: - ora, se este homem que, pelos vistos, tinha realmente na cabeça uma ideia aproveitável, não a tivesse podido efectivar, seria lícito, sem mais exame, defini-la como louca? E, a ele, taxá-lo de vaidoso? E abafá-lo de provérbios?
Falar, muitas vezes, não é tão fácil como parece. Porque é preciso que a fala seja mandada por determinada substância que existe dentro dos crânios (nos crânios em que existe), e que é de cor cinzenta.

TOMAZ DE FIGUEIREDO – Pedra d´Armas - “Os Homens que falam”, págs. 161/163 – ed. Opera Omnia, 2014



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