Chá com Letras Online: O MARINHEIRO DE ÁGUA DOCE - LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES


LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES
60.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


O MARINHEIRO DE ÁGUA DOCE


O nome dele é José Afonso Muxaxo e actualmente explora um restaurante sobre a falésia, na praia do Camilo, em Lagos. Antes disso foi emigrante na Alemanha, trabalhando em fábrica ou cuidando de jardins. Antes ainda foi um dos pioneiros dos barcos que levam os turistas de Lagos a visitar as grutas da Ponta da Piedade. E, antes e sobretudo, foi pescador: pescador nas traineiras em Lagos, pescava de noite no mesmo barquinho onde passeava os turistas durante o dia, e pescador de bacalhau na Terra Nova, onde fez quatro campanhas à vela.
Quando eu tinha onze anos e os meus pais tinham acabado de descobrir o Algarve, estava um dia deitado na areia da praia D. Ana – onde então não havia mais do que trinta pessoas, sempre as mesmas, debaixo dos seus toldos reservados de ano para ano – quando vejo desembarcar um barco verde à vela, chamado Senhora do Mar. A bordo vinha o Zé Afonso, que nos perguntou se não queríamos dar um passeio às grutas: foi o princípio de uma iniciação mágica e de uma longa amizade.
O Zé Afonso ensinou-me a trepar às rochas e mergulhar lá de cima, dando um golpe de rins ao entrar na água, para não ir ao fundo como um prego: guardo uma cicatriz no peito que é o resultado de um golpe de rins falhado, na aprendizagem. Ensinou-me a pescar com “isco”, com “engodo”, “à amostra” e ao “corrido”. Veio-me buscar inúmeros fins de tarde e juntos, a sós com o “farnel” e uma garrafa de medronho para combater o frio, passámos noites mágicas a pescar lula “ao candeio” ao largo da baía de Lagos: uma noite que se levantou um temporal, estivemos à beira de naufragar juntos, passámos longas horas encharcados na escuridão, a tirar água do barco com baldes e ele enrolou-me na vela para eu não morrer de frio e até de manhã a minha mãe esperou com uma vela acesa à Senhora do Mar pelo nosso regresso. O Zé Afonso ensinou-me também a amanhar o peixe, a cozinhar caldeirada e a comer sardinhas assadas como um verdadeiro pescador: num dia de particular boa disposição, ele chegou a comer duzentas de seguida e, mais tarde, da Alemanha, escreveu-me uma carta pungente onde se queixava de só comer sardinhas de lata. E, enfim, ensinou-me um segredo que foi das maiores descobertas da minha vida: ensinou-me a ver o fundo do mar – de olhos abertos, porque máscaras não tínhamos. Foi um deslumbramento tão grande, um vício tão forte, que hoje, entre a D. Ana e a Ponta da Piedade, não deve haver buraco ou rocha submersa que eu não conheça de cor. Mas nunca consegui, como ele, ir buscar ouriços a quinze metros ou apanhar robalos à mão ou linguados com os dentes, como eu o vi fazer com estes dois olhos que, todavia, tanta coisa viram debaixo do mar.
Um dia, o Zé Afonso emigrou para a Alemanha e eu emigrei para a vida. Fui padrinho da sua filha mais velha, o que nos fez compadres, além de tudo mais. Ele voltou, abriu o restaurante e retirou-se dos passeios às grutas e das noites ao candeio. Eu deixei de ter Verões na praia e passei a ter “férias” – com filhos, trabalho e filas para o supermercado. Lagos cresceu e desapareceu a cidade da minha juventude. Foram tantas as coisas que morreram para sempre que nem adianta nomeá-las. Nas noites de Inverno, quando não há turistas no restaurante, o Zé Afonso ocupa-se a fazer minuciosas réplicas em miniatura dos barcos em que navegou ou dos que viu em revistas. Duas vezes em cada quinze dias de férias vou jantar com ele à praia do Camilo e, só por nostalgia, há uma manhã que vou à praia D. Ana. Abro caminho a custo entre a multidão de corpos a bronzear, vou até ao canto da praia onde há muitos anos nos conhecemos e sorrio de saudade quando oiço os barqueiros a chamar os turistas: “Grotten besuch? Visitez les grotes?” Às vezes, só para ver se continua tudo no sítio ou para me libertar daquela confusão, enfio a máscara e as barbatanas (o resto do equipamento dorme em pó de talco há anos sem fim) e vou “dar uma volta”. Nem sinal de ouriços ou estrelas – do – mar, santolas ou polvos: há garrafas de plástico, latas de Coca – Cola e às vezes a visão inesperada de uma turista em topless nadando à superfície e vista de baixo para cima.
No Verão passado, porém, houve uma súbita oportunidade de regresso. O Zé Afonso conseguiu concretizar um sonho de toda a vida: comprou um verdadeiro barco de pesca, com cabine, radar, sonar, rádio e até telemóvel. E uma manhã embarcámos na Marina de Lagos e lá fomos os dois, em busca de tantos anos de ausência. Onde ele achou que o peixe “ia dar”, parámos o barco e largámos as linhas, sob uma vaga forte. E, como sempre, ele não se tinha enganado: caímos em cima de um bando de “chicharros” e em breve estamos a pescar em grande. Eu pescava um em cada quatro que ele tirava, e ele chegava a tirar dois ao mesmo tempo, em dois anzóis.
Foi então que, ali ao largo, ao lado do meu compadre de juventude, reaprendendo os gestos há tanto tempo abandonados e olhando a lindíssima cidade de Lagos onde fui tão feliz que até me dói lembrar, eu senti que o mundo andava à roda dentro da minha cabeça. Tentei desconcentrar-me, mas era impossível. Um tremor percorreu-me o corpo todo, as pernas desfaleceram, senti que a cara ficava verde, uma náusea espessa e miserável subiu por mim acima, abri a boca desesperadamente à procura de ar, mas já não consegui respirar: debrucei a cabeça fora de bordo e vomitei tripas e coração.
Voltámos para terra, calados: nunca, em tantos dias e noites de mar, eu havia vomitado. Nunca o Zé Afonso me vira “mareado”. Era mais do que a minha reputação que fora borda fora: eram as nossas sagradas memórias de “companheiros do mar”. E certas coisas são irremediáveis, não têm regresso possível. A partir de agora, o mais que possa vir a ser é um marinheiro de Marina, um mergulhador de Oceanário e um pescador de rio. Olha só o que me havia de acontecer, ó Zé Afonso!

Miguel Sousa Tavares – “Não te deixarei morrer, David Crockett” – O marinheiro de água doce” - págs., 135/141 – 2016, Edições Clube do Autor. S.A



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