Chá com Letras Online: POESIA AGRÁRIA - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XVII


LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XVII
51.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal

POESIA AGRÁRIA

Penso que morreu a poesia agrária e pergunto a mim próprio se é possível, ao agricultor, viver sem poesia. Creio que não, mas, enfim, o homem do campo lá se vai arrastando – numa espécie de vida vegetativa. Se consegue para a boca, um pedaço de pão, dificilmente conseguirá, para a alma, um pedaço de riso. Nem sequer um esboço de sorriso…
Morreu a agricultura vergiliana, aquela que todos os dias era um poema escrito com a enxada, o cutelo ou a seitoira. A diversidade de trabalhos agrícolas, semelhante à do calendário, caiu em monotonia. O lavrador, agora, é economista. Só se atreve com o que vale a pena. Antigamente, fazia tudo o que lhe competia. Era incapaz de deixar a terra a monte, porque, ciência certa, semente que lhe deitasse não era esforço perdido.
Há hoje quem deixe a terra a monte, quem não semeie milho, nem trigo, nem centeio, porque, diz o lavrador, não vale a pena. Campos que produziam batata abençoada, torrões de açafrão, courelas em que marulhavam ervanços, todas essas leivas, gordas ou magras, vão empedernindo à mingua de cultura.
Isto se observa em terras altas do Douro, antigamente aradas e hoje quase maninhas. Nessas terras, de altitude acima dos quinhentos metros, o chão topava a tudo e de tudo se saía bem. Boa pinga, delicada fruta, belas hortaliças, pão de milho ou de trigo melhor do que biscoitos, premiavam todas as canseiras. O solo, para benefício de quem o cultivava, abria-se em forma de leque multicor. Hoje, as terras altas imitam as terras baixas. Limitam-se ao cultivo da vinha, porque o vinho, uma pipa, dá para comprar muita cebola. O lavrador, em vez de levar produtos ao mercado, vai ao mercado comprar os precisos para a sua cozinha. No dia em que os últimos nateiros, tributários da praça, aderirem à cultura da cepa, não terá que comprar.
Não vale a pena, ao lavrador de terras altas, plantar hortas nem semear trigo. Falta-lhe mão-de-obra que plante e semeie. Não tem pessoal que lhe transporte e espalhe na terra o velho estrume. Se algum graeiro sementa, dá-lhe a comer uma carapuça de adubo químico aviado na botica sem receita de doutor. Fácil de aplicar, não passa de lambisco no terreno afeito a digerir estrume.
Pelo que observo, penso que morreu a poesia agrária em terras altas do Douro. O mesmo vai suceder às encostas, dedicadas exclusivamente à vinha. Se, até hoje, o lavrador do Douro foi vinicultor, de amanhã em diante será apenas viticultor. O actual comerciante já começou a impedi-lo de fabricar o vinho. Compra-lhe as uvas para as espremer e levedar cientìficamente. Não fica ao lavrador um cangalho nem uma grainha. Não pode fazer água-pé nem aguardente redonda. Não pode encher o papo a uma galinha. Diz adeus à uva para nunca mais. Os túneis, sua glória, cairão a pedaços. O Douro deixará de cheirar a vinho fino. Lagares, armazéns, lotas, refrescos, trasfegas, carregações, berros de tanoeiro – tudo acabará. É como se morresse Baco.
Dornas aluídas no quinteiro… O carro de bois, que levava o néctar ao rio ou ao caminho de ferro, irá parar à leira ou, se lhe acudirem a tempo, ao museu etnográfico. A esse museu devem ir recolhendo, quanto antes, as alfaias inúteis da viticultura arcaica, feita empìricamente, mas, de tão boa memória, que deu volta ao mundo. Almudes, canados, balseiros, pareias, facas, pescadeiras, cálices de prova – toca para o museu, que são horas.
Das terras altas do Douro, desvie-se desde já, para esse jazigo, o velho apeiro, de tudo o que lhe servia para erguer uma horta, semear o trigo, crestar a colmeia e recolher a lenha. Se, à mingua de braços, não vale a pena tocar a leiva, guardem-se naquele álbum essas recordações. Guarde-se lá a enxada, o arado, a podoa, o mangoal, a picareta e o guilho.
Era linda, a mais não poder ser, a policultura das terras do alto Douro. O termo de cada freguesia era o livro das Geórgicas aberto. O bom observador pasmava da inteligência milenária latente na mão do homem rústico ao executar a mínima tarefa. Que método, que sabedoria adquirida ao logo de gerações e gerações… E a nomenclatura, peça por peça, dos utensílios agrícolas? Valia um dicionário colorido. Experimente o primeiro etnólogo ouvir, da boca do último carreiro, o nome da cada uma das partes do seu carro. Vá também pelos campos, onde ainda encontrará verbos moribundos, mas, ainda gostosos, como arrendar, suchear e chasquiçar.
Terá sido pouco rendosa a lavoura antiga. Mas, sempre rendeira mais do que a terra inculta. Esta, na sua pasmaceira, é sinónimo de morte.
Pouco rendimento, apresigado com alegria, contentava o lavrador. Arcas cheias, grandes medas de batata, cozinha abastecida de renovos, tabuleiros cheios de maçãs, que mais era preciso?
O lavrador montanhês chegou a um tal apuro. Vende a pinga do vinho e algum azeite, se o tem de sobra, para comprar, como burguês, meia dúzia de batatas e dois ou três molestes de pão mal amanhado. Que mal lhe deve saber este betume comparado com o pão antigo!
Se a lavoura não pode viver sem poesia, espere-se, com paciência, que suceda poesia nova à poesia velha. Inventem-se poéticos bonecos, com corda de relógio, capazes de executar o trabalho braçal e dançar no terreiro ao despegar do trabalho. Invente-se a arte de revolver e pentear a terra com o dedo apontado a um botão. Até lá, o interregno será prosaico.

15 de Agosto de 1964

João de Araújo Correia, PASSOS PERDIDOS – “Poesia Agrária”, págs. 191/195 – 1967 - Portugália Editora
Imagem In: https://www.sjpesqueira.pt/pages/1260




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