Chá com Letras Online: POBRE CONTISTA - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIV



LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIV
49.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


POBRE CONTISTA

QUANDO por aí passou, como gato por cima das brasas, o centenário de Fialho de Almeida, não faltou quem lamentasse, lamentàvelmente, que o nosso grande contista não tivesse conseguido ser também romancista.
Concluiu-se que as nossas carpideiras, desgrenhadas sobre a memória do autor da Ruiva, consideram o conto como primeiro degrau de uma escaleira, cujo topo é o romance. Como quem diz: o conto é o género íntimo, e o romance é género sublime.
Custa-me deixar sem reparo o mau juízo das nossas carpideiras. Que os maus romancistas comecem pelo conto, como quem aguça a pena para mais longa escrita, admite-se, considerando que o conto é, em geral, mais curto que o romance. Considerar-se que o romancista é licenciado, e o contista caloiro, é uma barbaridade que não deve cair em saco roto.
O género conto é distinto do género romance. Nem romance é conto grande, nem o conto é romance pequeno. O que distingue os dois não é medida… É conjunto de qualidades alheias ao sistema métrico. Há contos largos e há romances curtos. O Mandarim, do Eça de Queirós, com as suas cento e tal páginas, é conto. São pequenos romances, em geral, os maus contos de grandes romancistas. Romancinhos – lhes chamaria Camilo.
Conto, como o sentia Trindade Coelho, é uma emoção escrita. Mas, como se fosse contada, para que o calor humano se não perca. E, direita ao fim, para se não diluir pelo caminho.
O conto, se bem que escrito em estilo oral, desativado, exige perfeição. Exige perfeição com ar de desleixada. Mas, perfeição exige… É o soneto em prosa, como li algures. Mas, que não lesse… Já o tinha pensado. Toca o viático ao conto se for mal escrito.
O romance não é emoção. É reflexo da vida num espelho – definição de Stendhal. Serve para o distinguir de conto. Romance que o imite, neste particular, está perdido. É o mesmo que raspar, aqui e além, com uma navalhinha, as costas do espelho.
Por estas e outras razões, não se lamente a Fialho, porque não foi romancista. Nem também se deplore que bons romancistas não sejam contistas. Não há bossas literárias mais finas umas que outras. As bossas literárias são equivalentes. Há contistas incapazes de escrever um romance como há romancista incapaz de alinhavar um conto.
Chorar, porque Fialho não foi romancista, é como chorar, porque a laranjeira secou antes de dar melancias.
Junho - 1957
João de Araújo Correia, MANTA DE FARRAPOS – “Pobre contista”, págs. 77/79 – 1962, Imprensa do Douro, Editora

Imagem in: https://www.vinculadosaobarreiro.com/38Fialh.../main_38.html




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