Chá com Letras Online: CASAS FECHADAS - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIII

LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIII

47.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal

CASAS FECHADAS

SUBI, um dia destes, à minha aldeia natal.
Digo subir, porque o verbo ir, tratando-se da minha aldeia, não chega. É quase preciso o verbo trepar. Fica situada de fronte do Marão, a dez quilómetros do meu eremitério.
O que me vale, para lá chegar num rufo, é alugar um automóvel de boa colada, bem governado por motorista afeito a excursões alpestres. Para regressar direito, é indispensável que o automóvel tenha travões solícitos e obedientes. Um dos precipícios, onde se aprende a voar sem querer, chama-se o Pendão!
Mas, nada de sustos… Se o automóvel for bom, desde que vá em boas mãos, chega-se à minha aldeia num rufo e regressa-se em segurança.
Foi o que me aconteceu numa noite destas, quando a saudade me levou a visitar um parente, enlutado desde manhã pelo falecimento de sua mãe, que, aos oitenta e oito anos, prometia viver até os cem. Prometer não é cumprir. Viveu ao menos sem ter conhecido a decrepitude.
Vi-me, de repente, numa airosa sala, onde, em pequeno jantei e ceei muitas vezes com os meus tios maternos. Parece-me que estou a ver, à cabeceira da mesa, o irmão do meu avô, o tio Joaquim, de grandes barbas brancas, presidindo, pelo Natal, a uma consoada. Como fôssemos treze, número fatídico naquele tempo, chamou-se da cozinha a criada mais nova para quebrar o enguiço.
E quebrou-o, porque não houve azar naquela noite, nem morreu nenhum conviva nos doze meses seguintes. O tio Joaquim, cujas barbas lhe contavam os dias, foi o primeiro a encetar o bando. Mas, só o encetou daí a uns anitos…
Questão de se esperar. Uns agora, outros logo, tios e tias, uma sobrinha, a própria criada nova, rodaram para donde se não volta.
Na airosa sala, onde me encontrei, uma noite destas, com o meu parente enlutado, vi apenas, quase velhas, duas sobreviventes da célebre consoada – a Miquinhas e a Aninhas, filhas do meu tio Manuel, falecido pela vindima, no ano da Pneumónica.
Imagine-se a disposição do meu espírito em tão airosa sala… Vi-me criança em duas oleografias que ornam as paredes – a do Verão e a do Inverno. Parecia-me, em pequeno, que a imagem do Verão, vestida de claro, era o meu tio mais novo. A do Inverno, vestida de escuro, era o meu tio Padre. Vi-me como fui, regressando à imaginação infantil. Na face abatida de minhas primas, vi-me como hoje sou.
Tinham acudido vizinhos a cumprimentar o dorido. Foram-se sentando, e o fio da noite, feito conversa, ia passando de mão em mão. Quando tocou a vez ao Artur, disse o Artur:
- Mais uma casa fechada!
O Artur, não obstante as rugas e os cabelos brancos, é ainda um rapaz. Não engordou, nem casou, e veste-se finamente… Parece enamorado. Como passou parte da vida pelos manicómios, desde muito novo, conserva debaixo das rugas, e dos cabelos brancos, um certo ar de juventude esquecida.
- Mais uma casa fechada, repetiu.
Só o Artur, em sua graciosidade psicológica, registava aquele facto. A casa ia fechar… sepultada a velha, o filho, médico no Porto, ia para o Porto. Mais uma casa fechada…
Como o Artur tem boa memória, pedi-lhe que me nomeasse as demais casas, fechadas na terra por falecimento de velhos.
O rol, que o Artur me deu, é infinito. Fechou a casa dos Deaquinos, a dos Machados, a do Serafim e a do Tibério, a das Gregórias, a do Amaral…
- E, qualquer dia, concluiu o Artur, fecha a da Fonte e a do Covelo… O essencial é que morram os velhos.
Idos os velhos, fecham os novos os seus casarios, construídos de pedra e cal para desafiar os séculos.
Ninguém quer viver no campo. Uns por necessidade, outros por amor do gozo, só em cidade querem viver.
Hoje, que a aldeia, com o automóvel, o telefone, o rádio, a televisão no nascedoiro, deixou de ser aldeia, ninguém a quer habitar. Antigamente, pessoas instruídas, professores, grandes proprietários, viviam na aldeia com satisfação, nela se enraizavam até o fim da vida. Se saíam do ninho, choravam pelo ninho. No Verão, antes das vindimas, iam até o mar por via da saúde. Tomavam vinte banhos, e viva!
Hoje, quem fala em aldeia? Horror, horror, horror… O filho de lavradores remediados, se consegue licenciar-se numa universidade, espera que os pais morram para se despedir de vez da sua aldeia natal. Só a conhece para lhe sacar, no fim de cada ano, o rendimento do vinho, da batata e do azeite.
O que se passa no meu torrão é o que se passa, a modo de dizer, em todas as aldeias. O êxodo de gente culta, para meios grandes, deixa os meios pequenos entregues a uma triste plebe, desprovida de qualquer espécie de amparo. As boas casas, fechadas, sem fogo que fumegue, mais hostilizam o pobre do que o magoariam abertas de par em par. Representam, fechadas, o egoísmo ausente, alheio à desgraça por interposição de léguas de distância.
Mais solidário é com o pobre o rico ao pé da porta do que o rico distante. Quem respira o mesmo ar, olha o mesmo céu, bebe o mesmo sol, pertence, pode dizer-se à mesma confraria. O rico, uma vez desterrado, torna-se olímpico, em modos e palavras, se alguma vez se aproxima do conterrâneo que lhe granjeia as terras. O homem suado odeia, por sua vez, o patrão que lhe aparece rescendente como pote de almíscar.
É da minha lembrança que pobres e ricos, na minha aldeia, formavam uma família pouco heterogénea. O rico, mais ou menos letrado, menos ou mais moralizado, temperava a rudeza e os instintos do pobre. O pobre, diante do rico, lembrava a este, de contínuo, que existe entre os homens um laço comum: o barro originário.
Hoje, com as casas ricas fechadas, o pobre, que se multiplica tanto como os roedores, vai procurar, fora das povoações, cardenhas onde se acoite. Muito lhe custará fazer isso, sabendo que os ratos, prolíferos como ele, são ao menos senhores de boas moradias.
Remédio de todo este mal tem sido, até hoje, o caseiro ou o feitor habilidoso. Tarde ou cedo, compra ao patrão, com o dinheiro do patrão, a casa do patrão. Nela se instala, nela procria, dela dimanam os seus estudantes, que, uma vez formados, renegam da terra e da genealogia.
Não haverá outro remédio para esta desgraça?
Novembro - 1955
João de Araújo Correia, MANTA DE FARRAPOS – “Casas Fechadas”, págs. 10/19 – 1962, Imprensa do Douro, Editora


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