36.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
UMA VOZ
Eu só ouvia o coaxar das rãs e a voz da minha vizinha – o mais era silêncio. Ela rezava o terço numa varanda que dava para o rio. Eu ouvia-a da janela do meu quarto, rente à varanda. Levantava-me da cama e ia escutá-la todas as noites. Que curiosidade a minha, apesar de novo! Tinha só nove anos.
A canícula abrasara a terra durante o dia. Refrescava-a o negrume da noite polvilhado de estrelas. As rãs coaxavam tão aguçosas como se não quisessem deixar adormecer o mundo. Às vezes, subia do rio uma aragem que fazia estremecer as folhas de uma tília que tapava a minha janela e metade da varanda da minha vizinha. O que melhor podíamos descortinar era o céu todo estrelado. De espaço a espaço, um aerólito riscava o ar escuro. Era uma alminha que mudava de sítio na Casa do Senhor. Então a minha vizinha suspendia a reza e murmurava:
- Uma alminha que se mudou. Dai-lhe Senhor, o eterno descanso!
Rezava pelo descanso da almaum breve padre-nosso e reatava o terço ou começava a monologar.
- Ainda há quem diga que não existem alminhas. Que são estes lumes no céu, tão pequeninos e tão ligeiros, senão almas que Deus ilumina para que os homens acreditem nelas? Aquele meu homem, ai! Diz que são arolas da minha cabeça. Não acredita em nada. É um incréu. Casou comigo pela igreja, ajoelhou comigo à mesa da sagrada comunhão e logo no dia seguinte se pôs a fazer escárnio de um retábulo que pendurei no meu quarto. Isto não se fazia a uma filha de pais cristãos!
Padre-Nosso, que estais no céu. Que heresias aquela boca vomita! Não sei como se não abre a terra para nos engolir - a ele, porque as pronuncia, e a mim, porque as ouço. Se Deus quisesse, daria um exemplo. Não o dá, porque é pai misericordioso. Tem pena de mim, que sou sua filha. Quero-lhe tanto! Dá-me esta cruz para eu me aperfeiçoar. Que … é bem pesada! Um herege! Só me permite que eu vá à missa. Mais nada! Nem confissão, nem comunhão, nem terços, nem novenas. Veio aí um sábio pregar um tríduo. Morri pelo ouvir. Ai de mim, que me não foi concedida essa mercê! Poderei querer bem a um monstro como este? Quis-lhe de todo o meu coração, com toda a pureza da minha alma. Ele era tão bonito! Era e é. Que inveja causou o meu casamento e com que soberba segui até o altar o meu algoz! Diziam-me as senhoras piedosas que ele se regeneraria ao sopro da minha fé. Ora! Paguei bem paga a soberba com que o desposei. Em cada hora, em cada minuto da nossa vida em comum, me ofende a troco das minhas crenças. Oiço-lhe coisas que fazem tremer céus e terra. Olho para as paredes da sala e do quarto e afigura-se-me que as vejo aluir, tocadas como do vento da sua impiedade. A minha vida é um horror… um horror! Que me importam as infidelidades do homem? Tempo houve em que afectaram, se foi… o coração. O que não posso, senhor, é esquecer as ofensas feitas à minha alma. Dizer-me que a Hóstia é pão! Sempre metido com marafonas! Tudo lhe perdoo, mas… dizer.me que a Hóstia é pão comum, isso é que não lhe perdoo! Porque não posso. Quando virá ele do fado? Passa das duas horas. Venha quando quiser… Que me importa? Aqui, nesta varanda, estou com Deus. Com ele é que eu me quero. As próprias rãs… quem sabe se o não louvam naquele seu contínuo cantar desafinado? Negar a divindade! O que me vale é o pouco ou nenhum caso que ele faz de mim. Também não queria! Que vá para onde andou. Tudo lhe perdoo, menos as heresias. Isso é que não.
Ai! Se ele fosse como o Morgado! Aquele, sim. Com que devoção assiste à missa – só visto. Não tira os olhos de mim. Já me lembrei de ir a outra igreja. Mas, coitado, se para mim olha, vejo que é para me lamentar. Nem outro pensamento pode caber naquele espírito votado a Deus. Não pode… Aqueles olhos tão lindos, tão puros, tão azuis, são já pedacinhos do céu dos bem- venturados. Olham para mim com tanta pena, que chega a ser meiguice. Eu, pobre de mim – Deus sabe que não é pecado – sinto-me atraída por aquele olhar. Consola-me, Senhor, tão doce compaixão! Porque não casei eu com o Morgado? Seríamos tão felizes! As nossas almas gémeas caminhariam a par até ao infinito. Seríamos tão felizes! Bem se matou para que eu o quisesse, e eu, casei com o outro. Vaidade minha… Era o mais belo homem de Portugal. Era e é. É o meu homem, com ele é que eu me casei. O Morgado é santo. Dizem que até faz versos… Três horas e aquele meu senhor sem vir! Que lhe terá acontecido?
Esmorecia a voz. Empalideciam as estrelas. Afroixava o cântico das rãs. O hálito da madrugada fazia sussurrar a tília. Ouvia-se um ruído de passos numa escada.
João de Araújo Correia, NOITE DE FOGO E OUTROS CONTOS – “Uma voz”, Págs. 54/56 – Colecção duas horas de Leitura 27, 1974, Editorial Inova/Porto
Eu só ouvia o coaxar das rãs e a voz da minha vizinha – o mais era silêncio. Ela rezava o terço numa varanda que dava para o rio. Eu ouvia-a da janela do meu quarto, rente à varanda. Levantava-me da cama e ia escutá-la todas as noites. Que curiosidade a minha, apesar de novo! Tinha só nove anos.
A canícula abrasara a terra durante o dia. Refrescava-a o negrume da noite polvilhado de estrelas. As rãs coaxavam tão aguçosas como se não quisessem deixar adormecer o mundo. Às vezes, subia do rio uma aragem que fazia estremecer as folhas de uma tília que tapava a minha janela e metade da varanda da minha vizinha. O que melhor podíamos descortinar era o céu todo estrelado. De espaço a espaço, um aerólito riscava o ar escuro. Era uma alminha que mudava de sítio na Casa do Senhor. Então a minha vizinha suspendia a reza e murmurava:
- Uma alminha que se mudou. Dai-lhe Senhor, o eterno descanso!
Rezava pelo descanso da almaum breve padre-nosso e reatava o terço ou começava a monologar.
- Ainda há quem diga que não existem alminhas. Que são estes lumes no céu, tão pequeninos e tão ligeiros, senão almas que Deus ilumina para que os homens acreditem nelas? Aquele meu homem, ai! Diz que são arolas da minha cabeça. Não acredita em nada. É um incréu. Casou comigo pela igreja, ajoelhou comigo à mesa da sagrada comunhão e logo no dia seguinte se pôs a fazer escárnio de um retábulo que pendurei no meu quarto. Isto não se fazia a uma filha de pais cristãos!
Padre-Nosso, que estais no céu. Que heresias aquela boca vomita! Não sei como se não abre a terra para nos engolir - a ele, porque as pronuncia, e a mim, porque as ouço. Se Deus quisesse, daria um exemplo. Não o dá, porque é pai misericordioso. Tem pena de mim, que sou sua filha. Quero-lhe tanto! Dá-me esta cruz para eu me aperfeiçoar. Que … é bem pesada! Um herege! Só me permite que eu vá à missa. Mais nada! Nem confissão, nem comunhão, nem terços, nem novenas. Veio aí um sábio pregar um tríduo. Morri pelo ouvir. Ai de mim, que me não foi concedida essa mercê! Poderei querer bem a um monstro como este? Quis-lhe de todo o meu coração, com toda a pureza da minha alma. Ele era tão bonito! Era e é. Que inveja causou o meu casamento e com que soberba segui até o altar o meu algoz! Diziam-me as senhoras piedosas que ele se regeneraria ao sopro da minha fé. Ora! Paguei bem paga a soberba com que o desposei. Em cada hora, em cada minuto da nossa vida em comum, me ofende a troco das minhas crenças. Oiço-lhe coisas que fazem tremer céus e terra. Olho para as paredes da sala e do quarto e afigura-se-me que as vejo aluir, tocadas como do vento da sua impiedade. A minha vida é um horror… um horror! Que me importam as infidelidades do homem? Tempo houve em que afectaram, se foi… o coração. O que não posso, senhor, é esquecer as ofensas feitas à minha alma. Dizer-me que a Hóstia é pão! Sempre metido com marafonas! Tudo lhe perdoo, mas… dizer.me que a Hóstia é pão comum, isso é que não lhe perdoo! Porque não posso. Quando virá ele do fado? Passa das duas horas. Venha quando quiser… Que me importa? Aqui, nesta varanda, estou com Deus. Com ele é que eu me quero. As próprias rãs… quem sabe se o não louvam naquele seu contínuo cantar desafinado? Negar a divindade! O que me vale é o pouco ou nenhum caso que ele faz de mim. Também não queria! Que vá para onde andou. Tudo lhe perdoo, menos as heresias. Isso é que não.
Ai! Se ele fosse como o Morgado! Aquele, sim. Com que devoção assiste à missa – só visto. Não tira os olhos de mim. Já me lembrei de ir a outra igreja. Mas, coitado, se para mim olha, vejo que é para me lamentar. Nem outro pensamento pode caber naquele espírito votado a Deus. Não pode… Aqueles olhos tão lindos, tão puros, tão azuis, são já pedacinhos do céu dos bem- venturados. Olham para mim com tanta pena, que chega a ser meiguice. Eu, pobre de mim – Deus sabe que não é pecado – sinto-me atraída por aquele olhar. Consola-me, Senhor, tão doce compaixão! Porque não casei eu com o Morgado? Seríamos tão felizes! As nossas almas gémeas caminhariam a par até ao infinito. Seríamos tão felizes! Bem se matou para que eu o quisesse, e eu, casei com o outro. Vaidade minha… Era o mais belo homem de Portugal. Era e é. É o meu homem, com ele é que eu me casei. O Morgado é santo. Dizem que até faz versos… Três horas e aquele meu senhor sem vir! Que lhe terá acontecido?
Esmorecia a voz. Empalideciam as estrelas. Afroixava o cântico das rãs. O hálito da madrugada fazia sussurrar a tília. Ouvia-se um ruído de passos numa escada.
João de Araújo Correia, NOITE DE FOGO E OUTROS CONTOS – “Uma voz”, Págs. 54/56 – Colecção duas horas de Leitura 27, 1974, Editorial Inova/Porto
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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