LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XI
45.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
MÃE
O avô desta senhora, tão magrinha e tão pintada, que parece um passarinho tropical, foi tanoeiro. Numa rua escusa desta vila, amealhou os primeiros cobres a fazer canecos. Depois, lançou-se à construção perfeita de cascos para embarque. Enriqueceu. De rico foi a riquíssimo de um pulo com o negócio de vinhos. Diz-se que a sua especialidade era fazer sem uvas belas jeropigas. Esta perícia valeu-lhe a alcunha de João dos Milagres. Quem lha trocou por outra foi um rei do tempo, tão liberal como necessitado. Em troca de dois sacos de dinheiro, armou-lhe a cabeça com uma coroa de conde. Por este processo, ficou o João dos Milagres mudado em conde do Assobio. Pedira inocentemente ao rei a graça de lhe pôr o título assim agudo como homenagem ao sítio onde nascera, no termo de Poiares.
É o Assobio um lugarejo com duas casas e uma cortinha. Dizia porém o Conde que não negava a terra. Quis até que o rei lhe pintasse no brasão um assobio, embora aperfeiçoado em pífaro para não parecer mal. O rei porém não lhe fez a vontade. Rui-se e mandou-lhe gravar no escudo tão-somente as armas fabulosas dos Gadunhas, apelido de família do candidato a conde.
Deste negócio do rei com o tanoeiro é que deriva a impertinência da senhora. Está convencida de que houve aduelas na sua ascendência… no tempo dos Cruzados.
Sempre magrinha, casou há anos com um doutor económico e financeiro, mas, sem emprego e sem sangue. Casou com ele por paixão melódica. O doutor cantava fados com voz diamantina e doce. Ela morria por fados. Casou com ele. Assim lhe deu emprego. Quanto a nobreza, nobilitou-se o noivo por sua conta. Quando se viu casado, enfiou nos dedos e pendurou no peito da camisa as armas da senhora. Para todos os efeitos, é um fidalgo.
Vivem os dois na Quinta dos Arcos. Esta magnífica propriedade pertenceu a um marquês do Minho, que a vendeu, em hora de apuro, ao Conde do Assobio.
A Quinta dos Arcos tem casa apalaçada sobre uma colina verde. Ao fundo da colina, passa o rio Doiro e uma estrada real. Dão para a estrada os dois portões da quinta – duas obras de granito lavrado no tempo do Marquês. As umbreiras do portão ocidental são ninfas. As do outro são sereias. De cada lado dos nobres alizares, dois muros arredondados formam meias-laranjas, sombreadas de álamos e convidativas ao repoiso por meio de dois bancos de lisa cantaria. No tempo do Marquês, era cada um dos portões encimados por pedras de armas condicentes com a aquitectura do pórtico. Hoje, não. A dona da quinta mandou apear essas robustas e floridas pedras e substituíu-as pelos brasões dos Gadunhas… em mármore.
Na casa da quinta, mandou erguer todo o pavimento vetusto de pátios e passadiços para o actualizar. As velhas lajes, puídas do atrito de passadas fortes, foram escorraçadas para que os pezinhos da actual dona… pisassem marmorite.
No interior do paço senhorial, naquelas imensas salas, foram as paredes despidas dos denegridos painéis do tempo do Marquês para serem adornadas com uma bonita colecção de oleografias alegres. A par de reproduções de Wateau, obtidas por um processo que dá ao papel o tom da tela delambida, há, em pândega rasgada, virgens de Rafael, bêbados de Velásquez e carnes cruóricas de Rubens.
Sobre consolas, vêem-se por toda a casa monstruosidades de jaspe. Na sala de jantar, a um lado e outro da Ceia de Cristo, há lebre e perdizes de louça, penduradas com atilhos de cabeça para baixo. As pratas e cristais abarrotam o ar de riqueza.
Na capela, entre duas imagens italianas do século XVII, irradia a sua candura um Sagrado Coração de Jesus francês da alvorada do nosso século. O pavimento, que fora de castanho, é um espelhado parqué de madeira do Brasil. A luz, que vinha outrora de uma friesta incidir no soalho ou no altar, consoante a hora do dia, mas, sempre como a dava o sol – num feixe de raios naturais – coa-se agora num painel doirado aderente a uma janela… É mel derramado no altar e no parqué.
Nesta casa, em que toda a nobreza foi sacrificada ao chique, vivem os dois fidalgos provincianos uma espécie de vida citadina. Ele percorre os campos com botas de verniz. Ela monta a cavalo despida para um baile. Ele fala francês com a esposa para os criados não entenderem, mas, o francês do doutor é um francês transmontano. As criadas, por sua vez, não falam o português popular. Obriga-as a senhora a substituir as expressões vernáculas, que supõe erradas, por expressões traduzidas letra a letra do francês falado em Lisboa. Elas, coitadas, fazem-lhe a vontade, mas, trocam o b pelo v.
Os dois fidalgos vivem isolados, porque a nobreza velha os despreza e eles desprezam a burguesia sem brasão. Para se vingarem do isolamento, vão às vezes a Lisboa e, de tempos a tempos, a Paris. Quando regressam à Quinta dos Arcos, as criadas içam numa torre o pendão dos Gadunhas.
O filho único destes ricaços era um rapazinho insolente chamado Rodolfo João. Os pais orgulhavam-se da originalidade e harmonia encontrada por eles na junção destes dois nomes. O próprio pequeno se julgava grande por se chamar assim. Rodolfo João!
Tinha só seis anos este menino e não era só orgulhoso do nome. Era-o da riqueza de seus pais. Olhava em redor de si e via-se príncipe herdeiro do reino que habitava. Abaixo do rei e da rainha, era ele o dono da quinta e o senhor da criadagem. Reflectia-se no seu ânimo o ânimo imperial da mãe e a importância adquirida pelo pai com o casamento rico. Era uma criança olímpica. Todavia, esta altivez, manifestada diante dos caseiros e dos cavadores, retraía-se, amarrotava-se como um pano vil quando o pequeno estivesse só. Ia a mãe ou as criadas dar com ele todo encolhido num recanto da casa. À primeira pergunta que lhe fizessem, ouviam como resposta uma mentira. Estava ali, porque o caseiro ou feitor o tinham perseguido para lhe baterem. Outras vezes, dizia que o paquete dos bois correra atrás dele para lhe furar a barriga com uma navalha. E chorava, agarrando-se às pernas da mãe!
Durante muito tempo, a mãe acreditou em todos os embustes do menino. Despedia caseiros, feitores e paquetes apontados a dedo pelo caprichoso acusador. Eles juravam e trejuravam inocência, mas, a senhora não se comovia. Quanto mais eles juravam, mais se enfurecia contra os desgraçados.
- Rua!
Não houve mestra que conseguisse ensinar o menino sem se desgostar. A mãe vigiava-as como inimigas do filho. Deixava de lhes falar, quando o pequeno se queixasse de que tinham mau modo e despedia-as quando ele inventava que lhe tinham puxado as orelhas. Eram umas escravas. Refugiavam-se no quarto para chorar à vontade. Quando se despediam, amaldiçoavam a casa.
Uma destas humildes criaturas conseguiu impor-se como senhora. Era inteligente e briosa. Ensinou a ler o rapazinho e convenceu os pais de que o menino era mentiroso. Eles acreditaram-na e acharam graça ao defeito do filho. Daí por diante, cada peta do morgadinho era celebrada como um feito heróico. O pequeno porém aborrecia-se, porque a suas invenções deixaram de incomodar o pessoal da quinta. Servia-se do telefone para intrigar gente desconhecida.
Os pais viram no filho um prodígio. Dizia o pai: «hás-de vir a ser, com esse feitio, um grande advogado». Todavia, a mãe protestava. - Isso nunca! Antes quero morrer. Deus que me fez rica, levaria a mal que o nosso filhinho se formasse para trabalhar. Quero-o instruído para não fazer má figura em sociedade. Quanto a trabalho, graças a Deus, não precisa. Queres tu ir para o colégio onde andam os filhos do Conde de Abrunhais? Queres? Dizem que é bom…
O projecto do internamento do filho ia-se protelando. O rapaz, esquecido de quanto lhe ensinara a última professora, entretinha-se a matar pássaros com uma espingardinha ou perseguia as criadas e jornaleiras para lhes palpar os seios. Como tinha só dez anos, riam-se elas desta precocidade.
Foi neste conflito, dos dez para os onze anos, que o pequeno mudou de carácter. Deixou de ser altivo e mentiroso. Esqueceu-se da espingarda e deixou de palpar os seios das criadas. Entristeceu. Perdeu o apetite, acamou com febre.
Que aflição tiveram os pais quando o viram doente! O doutor económico e financeiro, que tinha engordado, fazendo da gordura importância, emagreceu. A mãe deixou de se pintar.
Era uma doença esquisita. O menino, ora tinha febre, ora não tinha. Ora comia com voracidade, ora afastava os pratos com nojo. Às vezes, doía-lhe a cabeça. O médico não dizia nada. Observava as pupilas do rapaz com uma atenção terrível.
Foi num destes exames, demasiado longo e demasiado penoso para a inquietação dos pais, que o médico disse: «é muito grave». Palavras não eram ditas, quando o doentinho fez um esgar, torceu os braços, enclavinhou os dedos e deu um gemido surdo e curto. A mãe ergueu-se, levou as mãos à cabeça e gritou como uma mulher do povo. Depois, caiu numa cadeira e chorou de modo que o médico, apesar de velho, se comoveu. Disfarçou a piedade, tapando com a mãos magra o rosto enrugado. Depois, circunvagou os olhos pelos luxos estapafúrdios do quarto e foi poisá-los na face da mulher que chorava. Então endireitou o busto e disse contente, ponderado como se tivesse feito uma descoberta:
- Chore! Essas lágrimas são verdadeiras…
João de Araújo Correia, CONTOS DURIENSES – “Mãe”, págs. 223/229 – 2.ª edição revista pelo autor, 1970 -Imprensa do Douro Editora
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
45.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
MÃE
O avô desta senhora, tão magrinha e tão pintada, que parece um passarinho tropical, foi tanoeiro. Numa rua escusa desta vila, amealhou os primeiros cobres a fazer canecos. Depois, lançou-se à construção perfeita de cascos para embarque. Enriqueceu. De rico foi a riquíssimo de um pulo com o negócio de vinhos. Diz-se que a sua especialidade era fazer sem uvas belas jeropigas. Esta perícia valeu-lhe a alcunha de João dos Milagres. Quem lha trocou por outra foi um rei do tempo, tão liberal como necessitado. Em troca de dois sacos de dinheiro, armou-lhe a cabeça com uma coroa de conde. Por este processo, ficou o João dos Milagres mudado em conde do Assobio. Pedira inocentemente ao rei a graça de lhe pôr o título assim agudo como homenagem ao sítio onde nascera, no termo de Poiares.
É o Assobio um lugarejo com duas casas e uma cortinha. Dizia porém o Conde que não negava a terra. Quis até que o rei lhe pintasse no brasão um assobio, embora aperfeiçoado em pífaro para não parecer mal. O rei porém não lhe fez a vontade. Rui-se e mandou-lhe gravar no escudo tão-somente as armas fabulosas dos Gadunhas, apelido de família do candidato a conde.
Deste negócio do rei com o tanoeiro é que deriva a impertinência da senhora. Está convencida de que houve aduelas na sua ascendência… no tempo dos Cruzados.
Sempre magrinha, casou há anos com um doutor económico e financeiro, mas, sem emprego e sem sangue. Casou com ele por paixão melódica. O doutor cantava fados com voz diamantina e doce. Ela morria por fados. Casou com ele. Assim lhe deu emprego. Quanto a nobreza, nobilitou-se o noivo por sua conta. Quando se viu casado, enfiou nos dedos e pendurou no peito da camisa as armas da senhora. Para todos os efeitos, é um fidalgo.
Vivem os dois na Quinta dos Arcos. Esta magnífica propriedade pertenceu a um marquês do Minho, que a vendeu, em hora de apuro, ao Conde do Assobio.
A Quinta dos Arcos tem casa apalaçada sobre uma colina verde. Ao fundo da colina, passa o rio Doiro e uma estrada real. Dão para a estrada os dois portões da quinta – duas obras de granito lavrado no tempo do Marquês. As umbreiras do portão ocidental são ninfas. As do outro são sereias. De cada lado dos nobres alizares, dois muros arredondados formam meias-laranjas, sombreadas de álamos e convidativas ao repoiso por meio de dois bancos de lisa cantaria. No tempo do Marquês, era cada um dos portões encimados por pedras de armas condicentes com a aquitectura do pórtico. Hoje, não. A dona da quinta mandou apear essas robustas e floridas pedras e substituíu-as pelos brasões dos Gadunhas… em mármore.
Na casa da quinta, mandou erguer todo o pavimento vetusto de pátios e passadiços para o actualizar. As velhas lajes, puídas do atrito de passadas fortes, foram escorraçadas para que os pezinhos da actual dona… pisassem marmorite.
No interior do paço senhorial, naquelas imensas salas, foram as paredes despidas dos denegridos painéis do tempo do Marquês para serem adornadas com uma bonita colecção de oleografias alegres. A par de reproduções de Wateau, obtidas por um processo que dá ao papel o tom da tela delambida, há, em pândega rasgada, virgens de Rafael, bêbados de Velásquez e carnes cruóricas de Rubens.
Sobre consolas, vêem-se por toda a casa monstruosidades de jaspe. Na sala de jantar, a um lado e outro da Ceia de Cristo, há lebre e perdizes de louça, penduradas com atilhos de cabeça para baixo. As pratas e cristais abarrotam o ar de riqueza.
Na capela, entre duas imagens italianas do século XVII, irradia a sua candura um Sagrado Coração de Jesus francês da alvorada do nosso século. O pavimento, que fora de castanho, é um espelhado parqué de madeira do Brasil. A luz, que vinha outrora de uma friesta incidir no soalho ou no altar, consoante a hora do dia, mas, sempre como a dava o sol – num feixe de raios naturais – coa-se agora num painel doirado aderente a uma janela… É mel derramado no altar e no parqué.
Nesta casa, em que toda a nobreza foi sacrificada ao chique, vivem os dois fidalgos provincianos uma espécie de vida citadina. Ele percorre os campos com botas de verniz. Ela monta a cavalo despida para um baile. Ele fala francês com a esposa para os criados não entenderem, mas, o francês do doutor é um francês transmontano. As criadas, por sua vez, não falam o português popular. Obriga-as a senhora a substituir as expressões vernáculas, que supõe erradas, por expressões traduzidas letra a letra do francês falado em Lisboa. Elas, coitadas, fazem-lhe a vontade, mas, trocam o b pelo v.
Os dois fidalgos vivem isolados, porque a nobreza velha os despreza e eles desprezam a burguesia sem brasão. Para se vingarem do isolamento, vão às vezes a Lisboa e, de tempos a tempos, a Paris. Quando regressam à Quinta dos Arcos, as criadas içam numa torre o pendão dos Gadunhas.
O filho único destes ricaços era um rapazinho insolente chamado Rodolfo João. Os pais orgulhavam-se da originalidade e harmonia encontrada por eles na junção destes dois nomes. O próprio pequeno se julgava grande por se chamar assim. Rodolfo João!
Tinha só seis anos este menino e não era só orgulhoso do nome. Era-o da riqueza de seus pais. Olhava em redor de si e via-se príncipe herdeiro do reino que habitava. Abaixo do rei e da rainha, era ele o dono da quinta e o senhor da criadagem. Reflectia-se no seu ânimo o ânimo imperial da mãe e a importância adquirida pelo pai com o casamento rico. Era uma criança olímpica. Todavia, esta altivez, manifestada diante dos caseiros e dos cavadores, retraía-se, amarrotava-se como um pano vil quando o pequeno estivesse só. Ia a mãe ou as criadas dar com ele todo encolhido num recanto da casa. À primeira pergunta que lhe fizessem, ouviam como resposta uma mentira. Estava ali, porque o caseiro ou feitor o tinham perseguido para lhe baterem. Outras vezes, dizia que o paquete dos bois correra atrás dele para lhe furar a barriga com uma navalha. E chorava, agarrando-se às pernas da mãe!
Durante muito tempo, a mãe acreditou em todos os embustes do menino. Despedia caseiros, feitores e paquetes apontados a dedo pelo caprichoso acusador. Eles juravam e trejuravam inocência, mas, a senhora não se comovia. Quanto mais eles juravam, mais se enfurecia contra os desgraçados.
- Rua!
Não houve mestra que conseguisse ensinar o menino sem se desgostar. A mãe vigiava-as como inimigas do filho. Deixava de lhes falar, quando o pequeno se queixasse de que tinham mau modo e despedia-as quando ele inventava que lhe tinham puxado as orelhas. Eram umas escravas. Refugiavam-se no quarto para chorar à vontade. Quando se despediam, amaldiçoavam a casa.
Uma destas humildes criaturas conseguiu impor-se como senhora. Era inteligente e briosa. Ensinou a ler o rapazinho e convenceu os pais de que o menino era mentiroso. Eles acreditaram-na e acharam graça ao defeito do filho. Daí por diante, cada peta do morgadinho era celebrada como um feito heróico. O pequeno porém aborrecia-se, porque a suas invenções deixaram de incomodar o pessoal da quinta. Servia-se do telefone para intrigar gente desconhecida.
Os pais viram no filho um prodígio. Dizia o pai: «hás-de vir a ser, com esse feitio, um grande advogado». Todavia, a mãe protestava. - Isso nunca! Antes quero morrer. Deus que me fez rica, levaria a mal que o nosso filhinho se formasse para trabalhar. Quero-o instruído para não fazer má figura em sociedade. Quanto a trabalho, graças a Deus, não precisa. Queres tu ir para o colégio onde andam os filhos do Conde de Abrunhais? Queres? Dizem que é bom…
O projecto do internamento do filho ia-se protelando. O rapaz, esquecido de quanto lhe ensinara a última professora, entretinha-se a matar pássaros com uma espingardinha ou perseguia as criadas e jornaleiras para lhes palpar os seios. Como tinha só dez anos, riam-se elas desta precocidade.
Foi neste conflito, dos dez para os onze anos, que o pequeno mudou de carácter. Deixou de ser altivo e mentiroso. Esqueceu-se da espingarda e deixou de palpar os seios das criadas. Entristeceu. Perdeu o apetite, acamou com febre.
Que aflição tiveram os pais quando o viram doente! O doutor económico e financeiro, que tinha engordado, fazendo da gordura importância, emagreceu. A mãe deixou de se pintar.
Era uma doença esquisita. O menino, ora tinha febre, ora não tinha. Ora comia com voracidade, ora afastava os pratos com nojo. Às vezes, doía-lhe a cabeça. O médico não dizia nada. Observava as pupilas do rapaz com uma atenção terrível.
Foi num destes exames, demasiado longo e demasiado penoso para a inquietação dos pais, que o médico disse: «é muito grave». Palavras não eram ditas, quando o doentinho fez um esgar, torceu os braços, enclavinhou os dedos e deu um gemido surdo e curto. A mãe ergueu-se, levou as mãos à cabeça e gritou como uma mulher do povo. Depois, caiu numa cadeira e chorou de modo que o médico, apesar de velho, se comoveu. Disfarçou a piedade, tapando com a mãos magra o rosto enrugado. Depois, circunvagou os olhos pelos luxos estapafúrdios do quarto e foi poisá-los na face da mulher que chorava. Então endireitou o busto e disse contente, ponderado como se tivesse feito uma descoberta:
- Chore! Essas lágrimas são verdadeiras…
João de Araújo Correia, CONTOS DURIENSES – “Mãe”, págs. 223/229 – 2.ª edição revista pelo autor, 1970 -Imprensa do Douro Editora
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