LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA X
43.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
LINHAS TORTAS
A especialidade daquele sujeito, em matéria pecaminosa, era a conquista de senhoras frágeis, suscpetíveis de trair o marido por leviandade, capricho, amuo, vingança ou desencantamento. Senhoras que, enfim, se dessem mal com o marido. Cuidava de saber onde viviam e ia procurá-las no seu automóvel. Chamava assim a uma pandeireta, que comprara em segunda mão havia uns dez anos.
Antes de armar o laço à apetecida mulher, prendia o esposo, propondo-lhe negócios pouco lisos, isto é, moeda falsa, contrabando de sedas ou embarque de vinhos estragados. Propunha também, por entre dentes, a colocação de capitais a juros homicidas. Depois, admitido às salas, quer às de visitas, quer às de jantar, mostrava-se obsequioso, humilde, solapado. Mostrava-se pudibundo até que o anfitrião lhe abandonava a praça como se lhe dissesse: entrego-ta, que tenho mais que fazer.
Mas, ninguém imagina as tristes condições idílicas do homem. Pouco limpo, mal escanhoado e, sobretudo, mal falado. Trocava o b pelo v e metia em cada frase o estribilho toma para lhe encher o compasso.
Era mais manual que cerebral. Aprendeu a jogar a Canasta, mas, por influência do jogo, passou a chamar canastas a uma espécie de cestos, que as boas vareiras traziam à cabeça, apregoando, de povo em povo, a sardinha viva.
Com estes predicados, não faltaram senhoras que se deixassem levar do seu querer. Sucumbiam, dizendo entre si: é irresistível.
Algumas, tapando o nariz ao aroma do cavalheiro, aceitavam-no por sovinice. Rendiam-se a presentes, que o galã das dúzias lhes trazia em canastas, no tejadilho do carro. Perus, pernas de vitela e leitões de mama. Doçaria, pouca. Doce era ele ou julgava sê-lo…
Honrada, no meio de tudo isto, foi a mais dissoluta. Nem a troco de nova experiência o recebeu.
- Homem, lave-se primeiro! E aprenda a falar, ouviu? Olhe que nem todas as canastras são canastas, criaturinha!
- Bem sei, bem sei… O senhor Mendes também o há-de saber… Há-de saber quem a senhora é.
- Pouco me importa. É dos tais que não acreditam. Só vendo. Mas, como há-de ver com a sombra?
Retirou amuado, mas, não aniquilado. Continuou a cumprir o seu destino, contando por cada viagem, uma aventura fácil, mas satisfatória. Gabava, a amigos íntimos, as excelências de Dora, Pulquéria, Leonor e até Lucrécia.
Não sabia que tinha em casa, para os confins da raia, donde saía a prear, uma mulher delicada, feita por Deus como vime para amarrar um poeta.
Essa mulher tinha os ombros como duas asas, e o peito, um pouco retraído, era um abrigo de sentimentos finos. Cansava a falar - que pena, porque a sua voz era uma sinfonia de amor, clara e quente como o luar, nos montes, em Agosto. Iluminava e afagava. E, uma vez cansada, cedia aos olhos vivos e à boca triste a missão de interpretar a idealidade.
Tinha, no entanto, uns quadris femininos e o andar ondulante de seara núbil, tangida pelos caprichos do ar primaveril.
Era, como já se disse, mulher ou atilho para prender um poeta. E o poeta apareceu. Foi, por acaso, um espanholito, que viera pôr fábrica de chocolate no cabo da província. Viu-a e fingiu com ela.
Quando o marido voltou da última sortida, com as canastas vazias, dos presentes que tinha distribuído, chamou-a da rua, com as mãos ainda apoiadas no volante da pandeireta.
- Ó Beatriz, olha! Avia-te, mulher! Despacha-te, caramba! Trago-te uma coisa…
Quando viu que não tinha Beatriz nem meia Beatriz, chorou, com boca de raia e lágrimas de crocodilo.
- Era uma mulher, senhor Esteves, rezaram-lhe aos ouvidos umas mulherzinhas. Parecia uma santa, mas, era mulher. E o senhor, sempre saído, e atrás de saias, zelava-a pouco. Ainda bem, que levou a pequena… Que, se a não levasse, era pior que uma cadela. Olhe, senhor Esteves… Ninguém o havia de dizer. A sua senhora parecia Santa Cecília. Olhos mais lindos, fala mais macia… Que calamidade!
- Calaide-vos!
Quem melhor o consolou foi a mulher do espanhol, forma do seu pé. É uma mulher enorme, calipígia como duas montanhas. Fala pelos cotovelos e pôs o sal na moleira do senhor Esteves. Para maior segurança, obrigou-o a vender a pandeireta.
- Tú hado y el mio se han cumplido. Tú eres um mocoso, pero yo soy el pañuelo de tus narices. Tu señora era una dama como don Pepe es un hidalguito. Que sean felices, a su modo, que nosostros lo seremso a nuestra manera.
Assim o exorta a patroa. E ele cala-se…
A fábrica de chocolates prospera a olhos vistos. Esteves, que hoje se chama don Manuel, espera que Beatriz morra tuberculosa e que don Pepe sucumba à saudade para se arrumar definitivamente, como ele diz, com doña Concha.
JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “Linhas tortas”, págs. 140/146, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora – Lisboa
43.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
LINHAS TORTAS
A especialidade daquele sujeito, em matéria pecaminosa, era a conquista de senhoras frágeis, suscpetíveis de trair o marido por leviandade, capricho, amuo, vingança ou desencantamento. Senhoras que, enfim, se dessem mal com o marido. Cuidava de saber onde viviam e ia procurá-las no seu automóvel. Chamava assim a uma pandeireta, que comprara em segunda mão havia uns dez anos.
Antes de armar o laço à apetecida mulher, prendia o esposo, propondo-lhe negócios pouco lisos, isto é, moeda falsa, contrabando de sedas ou embarque de vinhos estragados. Propunha também, por entre dentes, a colocação de capitais a juros homicidas. Depois, admitido às salas, quer às de visitas, quer às de jantar, mostrava-se obsequioso, humilde, solapado. Mostrava-se pudibundo até que o anfitrião lhe abandonava a praça como se lhe dissesse: entrego-ta, que tenho mais que fazer.
Mas, ninguém imagina as tristes condições idílicas do homem. Pouco limpo, mal escanhoado e, sobretudo, mal falado. Trocava o b pelo v e metia em cada frase o estribilho toma para lhe encher o compasso.
Era mais manual que cerebral. Aprendeu a jogar a Canasta, mas, por influência do jogo, passou a chamar canastas a uma espécie de cestos, que as boas vareiras traziam à cabeça, apregoando, de povo em povo, a sardinha viva.
Com estes predicados, não faltaram senhoras que se deixassem levar do seu querer. Sucumbiam, dizendo entre si: é irresistível.
Algumas, tapando o nariz ao aroma do cavalheiro, aceitavam-no por sovinice. Rendiam-se a presentes, que o galã das dúzias lhes trazia em canastas, no tejadilho do carro. Perus, pernas de vitela e leitões de mama. Doçaria, pouca. Doce era ele ou julgava sê-lo…
Honrada, no meio de tudo isto, foi a mais dissoluta. Nem a troco de nova experiência o recebeu.
- Homem, lave-se primeiro! E aprenda a falar, ouviu? Olhe que nem todas as canastras são canastas, criaturinha!
- Bem sei, bem sei… O senhor Mendes também o há-de saber… Há-de saber quem a senhora é.
- Pouco me importa. É dos tais que não acreditam. Só vendo. Mas, como há-de ver com a sombra?
Retirou amuado, mas, não aniquilado. Continuou a cumprir o seu destino, contando por cada viagem, uma aventura fácil, mas satisfatória. Gabava, a amigos íntimos, as excelências de Dora, Pulquéria, Leonor e até Lucrécia.
Não sabia que tinha em casa, para os confins da raia, donde saía a prear, uma mulher delicada, feita por Deus como vime para amarrar um poeta.
Essa mulher tinha os ombros como duas asas, e o peito, um pouco retraído, era um abrigo de sentimentos finos. Cansava a falar - que pena, porque a sua voz era uma sinfonia de amor, clara e quente como o luar, nos montes, em Agosto. Iluminava e afagava. E, uma vez cansada, cedia aos olhos vivos e à boca triste a missão de interpretar a idealidade.
Tinha, no entanto, uns quadris femininos e o andar ondulante de seara núbil, tangida pelos caprichos do ar primaveril.
Era, como já se disse, mulher ou atilho para prender um poeta. E o poeta apareceu. Foi, por acaso, um espanholito, que viera pôr fábrica de chocolate no cabo da província. Viu-a e fingiu com ela.
Quando o marido voltou da última sortida, com as canastas vazias, dos presentes que tinha distribuído, chamou-a da rua, com as mãos ainda apoiadas no volante da pandeireta.
- Ó Beatriz, olha! Avia-te, mulher! Despacha-te, caramba! Trago-te uma coisa…
Quando viu que não tinha Beatriz nem meia Beatriz, chorou, com boca de raia e lágrimas de crocodilo.
- Era uma mulher, senhor Esteves, rezaram-lhe aos ouvidos umas mulherzinhas. Parecia uma santa, mas, era mulher. E o senhor, sempre saído, e atrás de saias, zelava-a pouco. Ainda bem, que levou a pequena… Que, se a não levasse, era pior que uma cadela. Olhe, senhor Esteves… Ninguém o havia de dizer. A sua senhora parecia Santa Cecília. Olhos mais lindos, fala mais macia… Que calamidade!
- Calaide-vos!
Quem melhor o consolou foi a mulher do espanhol, forma do seu pé. É uma mulher enorme, calipígia como duas montanhas. Fala pelos cotovelos e pôs o sal na moleira do senhor Esteves. Para maior segurança, obrigou-o a vender a pandeireta.
- Tú hado y el mio se han cumplido. Tú eres um mocoso, pero yo soy el pañuelo de tus narices. Tu señora era una dama como don Pepe es un hidalguito. Que sean felices, a su modo, que nosostros lo seremso a nuestra manera.
Assim o exorta a patroa. E ele cala-se…
A fábrica de chocolates prospera a olhos vistos. Esteves, que hoje se chama don Manuel, espera que Beatriz morra tuberculosa e que don Pepe sucumba à saudade para se arrumar definitivamente, como ele diz, com doña Concha.
JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “Linhas tortas”, págs. 140/146, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora – Lisboa
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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