LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XII
46.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
FALSO TESTEMUNHO
A mulher tinha sido acusada de roubo. Mas, acusada injustamente… Quem na acusou, a estas horas, deve estar no Inferno. A não ser que se tenha arrependido à última da hora…
A mulher, sentada no banco dos réus, parecia uma sombra esguia e curva como um gancho, mas, sem corpo a que pertencesse.
Assim se conservou até ao fim do julgamento. Nem as palavras do defensor a endireitavam, nem as do acusador as deprimiam. Deprimida estava, por natureza, com um chale preto agarrado aos ossos.
Coitada! Voltaria para a cadeia se lhe não acode, como testemunha abonatória, o seu antigo patrão, que vivia retirado para uma quinta, mas, conhecia, de raiz, a alma de cada pobre da sua freguesia.
Aborrecido do mundo, viera até ali defender a mulher, mas, que defesa! Portou-se como perito que mostrasse ao tribunal com um ponteiro, aqui e além, o cérebro da ré livre de culpa.
- Foi minha criada, casou de minha casa, podia-me ter roubado, e nunca me roubou. Teve um bando de filhos, que criou com muita pobreza, mas, honestidade. Aí, onde a vêem, é incapaz de mentir. É uma santa mulher.
O tribunal, até aí soturno, clareou-se com as palavras da testemunha, que era homem alto, já entrado em anos, mas, ainda válido e sobranceiro. Como se quisesse acabar de limpar a inocente da sujidade que nela acumulara o falso testemunho, repetiu:
- É incapaz de mentir. É uma santa mulher.
O juiz, que vira nela uma criminosa; o delegado que a mandaria enforcar, se pudesse; o acusador, que tencionava esfarrapá-la num discurso – toda essa gente mudou de parecer e de humor a respeito da criatura que ali estava sentada, com um chale escuro que lhe dava , salvo seja, o ar de sombra sem corpo.
Só o defensor é que se mostrou um pouco aborrecido. As palavras da testemunha, vigorosas e claras como duche de água limpa no pretório, inutilizam-lhe, de antemão, o brilho da defesa.
- É incapaz de mentir. É uma santa mulher.
Disse e retirou-se, deixando ao tribunal, apontado, o caminho a seguir com a acusada.
Saiu absolvida. Mas, os filhos que criara, com tanto sacrifício, tanto amor e tanta honradez, nenhum apareceu para lhe dar um abraço. Todos casados já, todos dispersos – como se nenhum já a conhecesse. Apenas a festejaram algumas mulheres pobres. Uma até lhe pagou, à saída do tribunal, numa baiuca, uma pinga de café. E um sujeito que lá estava, soprando a uma cerveja, ouviu contar a história daquela mulher de chale e levou-a a casa no seu automóvel. Era um homem de fora, triste, com os olhos papudos e barba negra, - mal feita ou por fazer. Seria viúvo…
À entrada de casa, encontrou o marido, que tinha quebrado uma perna em novo e ficara aleijado para toda a vida. Queixava-se nas luas e era um pouco surdo. Não trabalhava, se é que não é trabalho remendar uns cestos, deitar um pingo de solda numa lata ou colar uma cadeira para durar mais algum tempo. Era, por definição, o jeitoso.
A mulher berrou-lhe aos ouvidos: fiquei livre!
- Que ficaste livre sei eu. Vamo-nos deitar!
- Com o sol ainda tão alto? Não sejas doido. Pensa noutra coisa.
Entrou em casa e, como a visse desarrumada, tirou o chale, pegou na vassoira, desatou a varrer. Às tantas, parava, punha-se a recordar as palavras do seu antigo amo, que grande homem aquele! – É incapaz de mentir. É uma santa mulher…
- Valeu-me a pena ter sofrido, só para as ouvir, disse em voz alta.
O homem, da porta, perguntou-lhe o que estava para ali a alanzoar. Voltou à sua, dizendo: deita-te, mulher!
- Cala-te, maluco! Não sabes o que é a vida!
Varreu e espanou. Fez das fraquezas forças. Juntou a cinza no lar. Encheu com ela a pilheira. Acendeu o lume. Fez da casa, que era terreira, um palmito.
JOÃO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “Falso Testemunho”, págs. 163/169 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa
Imagem In: https://erroluys.com/images/8b37154r.jpg
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
46.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
FALSO TESTEMUNHO
A mulher tinha sido acusada de roubo. Mas, acusada injustamente… Quem na acusou, a estas horas, deve estar no Inferno. A não ser que se tenha arrependido à última da hora…
A mulher, sentada no banco dos réus, parecia uma sombra esguia e curva como um gancho, mas, sem corpo a que pertencesse.
Assim se conservou até ao fim do julgamento. Nem as palavras do defensor a endireitavam, nem as do acusador as deprimiam. Deprimida estava, por natureza, com um chale preto agarrado aos ossos.
Coitada! Voltaria para a cadeia se lhe não acode, como testemunha abonatória, o seu antigo patrão, que vivia retirado para uma quinta, mas, conhecia, de raiz, a alma de cada pobre da sua freguesia.
Aborrecido do mundo, viera até ali defender a mulher, mas, que defesa! Portou-se como perito que mostrasse ao tribunal com um ponteiro, aqui e além, o cérebro da ré livre de culpa.
- Foi minha criada, casou de minha casa, podia-me ter roubado, e nunca me roubou. Teve um bando de filhos, que criou com muita pobreza, mas, honestidade. Aí, onde a vêem, é incapaz de mentir. É uma santa mulher.
O tribunal, até aí soturno, clareou-se com as palavras da testemunha, que era homem alto, já entrado em anos, mas, ainda válido e sobranceiro. Como se quisesse acabar de limpar a inocente da sujidade que nela acumulara o falso testemunho, repetiu:
- É incapaz de mentir. É uma santa mulher.
O juiz, que vira nela uma criminosa; o delegado que a mandaria enforcar, se pudesse; o acusador, que tencionava esfarrapá-la num discurso – toda essa gente mudou de parecer e de humor a respeito da criatura que ali estava sentada, com um chale escuro que lhe dava , salvo seja, o ar de sombra sem corpo.
Só o defensor é que se mostrou um pouco aborrecido. As palavras da testemunha, vigorosas e claras como duche de água limpa no pretório, inutilizam-lhe, de antemão, o brilho da defesa.
- É incapaz de mentir. É uma santa mulher.
Disse e retirou-se, deixando ao tribunal, apontado, o caminho a seguir com a acusada.
Saiu absolvida. Mas, os filhos que criara, com tanto sacrifício, tanto amor e tanta honradez, nenhum apareceu para lhe dar um abraço. Todos casados já, todos dispersos – como se nenhum já a conhecesse. Apenas a festejaram algumas mulheres pobres. Uma até lhe pagou, à saída do tribunal, numa baiuca, uma pinga de café. E um sujeito que lá estava, soprando a uma cerveja, ouviu contar a história daquela mulher de chale e levou-a a casa no seu automóvel. Era um homem de fora, triste, com os olhos papudos e barba negra, - mal feita ou por fazer. Seria viúvo…
À entrada de casa, encontrou o marido, que tinha quebrado uma perna em novo e ficara aleijado para toda a vida. Queixava-se nas luas e era um pouco surdo. Não trabalhava, se é que não é trabalho remendar uns cestos, deitar um pingo de solda numa lata ou colar uma cadeira para durar mais algum tempo. Era, por definição, o jeitoso.
A mulher berrou-lhe aos ouvidos: fiquei livre!
- Que ficaste livre sei eu. Vamo-nos deitar!
- Com o sol ainda tão alto? Não sejas doido. Pensa noutra coisa.
Entrou em casa e, como a visse desarrumada, tirou o chale, pegou na vassoira, desatou a varrer. Às tantas, parava, punha-se a recordar as palavras do seu antigo amo, que grande homem aquele! – É incapaz de mentir. É uma santa mulher…
- Valeu-me a pena ter sofrido, só para as ouvir, disse em voz alta.
O homem, da porta, perguntou-lhe o que estava para ali a alanzoar. Voltou à sua, dizendo: deita-te, mulher!
- Cala-te, maluco! Não sabes o que é a vida!
Varreu e espanou. Fez das fraquezas forças. Juntou a cinza no lar. Encheu com ela a pilheira. Acendeu o lume. Fez da casa, que era terreira, um palmito.
JOÃO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “Falso Testemunho”, págs. 163/169 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa
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