40.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
A PRIMEIRA LIBRA
O inglês tinha-se apaixonado pelo concelho. Amava o planalto como doido. A pouco e pouco, ia-o estudando e fixando. Andava sempre de lápis em punho e objectiva às ordens, pendente de uma correia como útil condecoração.
Naquele domingo, depois de almoçar um bife de vitela. Tenro como a água, mas, um pouco débil, oh yess, bebeu um copo de velho vinho do Porto, glorious wine, e resolveu sair. Sacudiu as moscas, olhou para o Bom Jesus do Monte, que ornava em litografia a sala da pensão, fez duas perguntas à criada, que lhe servira a vitela, e saltou à rua – se assim se pode chamar a uma vereda esburacada.
O inglês tinha cinquenta anos, mas, ossudo, e, sobre os ossos, uma linha de músculos capazes de resistir a todos os exercícios. Ia, a pé, visitar as célebres quedas de água. Quer dizer: ia papar uma porção de léguas, porque as quedas de água ficam além, na extrema ocidental do concelho. Vertem, a modo de dizer, para outra província.
Atravessou campos e campos forrados de verde, tons macios, onde pastavam bois. Passavam por ele ciganos, que iam de longada, acordando quanta poeira havia no caminho. Mordiam, de olhos no vácuo, uma ideia antiga. Levavam os filhos nos quadris das mães. E, sobre as albardas dos burros, especados nas quatro patas, os cães das caravanas. Curious thing… Vá de fotografia.
Para lá de uma ponte, semelhante a um cavalo dobrado sobre um corgo, deparou-se-lhe uma cena bíblica. Ao abrigo de uma carvalheira, sobre dois plainos, separados por breve declive, tinha poisado uma família patriarcal com os seus animais. Seriam uns vinte bois… Sobressaíam deles. Em atitude hierática, dominical, os vultos da gente moça. Os velhos, a deslado, corcovavam cismando. Eles, de cajado ao queixo… Elas, com o queixo apontado ao peito e as mãos metidas debaixo do avental bordado.
Como de propósito, para o inglês apreciar, pegaram-se os bois, deram pancada, escornaram-se… Moços e moças ficaram quietos. Os velhos ainda mais… Ia-se armando, tau, tau, uma guerra de pontas, no cômoro de cima e no de baixo, quando um rapazinho, pouco maior do que a erva, acomodou os contentores. Salta aqui, salta acolá, com uma varinha do condão em punho, ditou a paz àqueles brutos. Fustigava-lhes os lombos fulvos com tal desembaraço, que o inglês berrou: brravo! Depois, quando a mansidão regressou ao quadro, toca a recolhê-los em duas fotografias: uma de frente e outra de perfil.
Antes de retomar o passo, no caminho poeirento, o inglês ergueu a mão e disse: thanks!
Desde o patriarca, tataravô seria, ao rapazinho heroico, todos corresponderam ao gesto do inglês com gravidade condigna. Alçaram também os dedos, mas, inclinando-os pra onde o inglês se dirigia, foi como dissessem: bem encaminhado!
O inglês despediu comovido. Lá adiante, à sua mão esquerda, no meio de uma chã, pastavam dois bois enormes, guardados apenas por duas criancinhas, dois rapazitos ainda mais pequenos do que o herói da refrega. Chamou-os, viu neles dois irmãos do outro menino. Admirou-os logo. Perguntou-lhes, em língua de trapos, se o Colmeal ainda era longe. Como lhe dissessem que era no cabo do mundo, sorriu, levou a mão ao bolso, e disse:
- Eu ser amigo de vossemecês. Ser vossemecê o mais velho? Guardar esta libra vossemecê. Não gastar… Ser recordação para vossemecês. Guardar.
E pousou na mão. Alternadamente, na cabeça do mais velho e do mais novo dos rapazitos.
Colmeal! Chamava-se assim, porque as casas são cobertas de colmo. Não vem de abelhas, que as não há por ali. Vem de palas negras, que agasalham os tectos. Colmeal! Quando o inglês lá chegou, viu à entrada do povo uma mulher bonita – very beatiful girl. Pediu-lhe que o acompanhasse às quedas de água. A rapariga corando disse: vou chamar a minha irmã.
E, à vista dos dentes da serra, soerguida do planalto como a tabela dum bilhar imenso, caminharam os três, por entre mato rastiço, até às quedas de água. Conversaram. O inglês pasmou da esperteza e senso das duas raparigas. Contaram que na sua terra todos se dão bem, todos se ajudam, ninguém é rico e ninguém é pobre. Não há trabalhadores assalariados. Cava e colheita faziam-se por auxílio mútuo. Dinheiro, pouco… Mas, para pagar tributo. Comprar um sombreiro e salgar a comida, vendiam o gado e algum centeio. Podia-se dizer que eram felizes.
O inglês, para ver as quedas de água, teve de se descalçar. Só assim os seus pés ingleses aderiram às pedras, prolongadas como palas por cima dos abismos.
As duas moças, como cabras, percorriam as arestas desses promontórios. Sem medo a vertigens, olhavam para o fundo das ravinas, mirando os pontos onde rebentavam, com fragor terrível, as colunas de água.
- Estamos afeitas. Às vezes, trazemos a rês até aqui. Fica lá em cima, e agente vem ver isto, que, de feio, se torna bonito.
- Very nice!, exclamou o inglês.
Quando se despediu das raparigas, quis gratificá-las, dar-lhes o preciso para comprarem um vestido novo. Não houve maneira!
- Nem por sombras, senhor! Não é preciso… Que é que nós fizemos? Ensinar-lhe o caminho? Na sua terra não nos faria o mesmo?
Recusaram a oferta como ultrajante. Mas, recusaram-na de bom modo. Aceitaram, como devido, o shake hands que o inglês lhes deu.
O viajante palmilhou de novo o caminho sem fim, perguntando e reperguntando aos seus botões, e à correia da máquina, se era possível viver em buracos uma pessoa e ser feliz com pouco dinheiro.
Quando passou à vista dos rapazinhos, a quem dera a libra, viu-os engalfinhados como dois demónios. Escorriam sangue. Ao passo que os bois, mugindo, chamavam gente para lhes acudir.
JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “A primeira libra”, págs. 80/87, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa
Imagem In: https://ardina.news/.../2016_12_26_1422279486_o-douro...
Selecção de Maria José Areal
A PRIMEIRA LIBRA
O inglês tinha-se apaixonado pelo concelho. Amava o planalto como doido. A pouco e pouco, ia-o estudando e fixando. Andava sempre de lápis em punho e objectiva às ordens, pendente de uma correia como útil condecoração.
Naquele domingo, depois de almoçar um bife de vitela. Tenro como a água, mas, um pouco débil, oh yess, bebeu um copo de velho vinho do Porto, glorious wine, e resolveu sair. Sacudiu as moscas, olhou para o Bom Jesus do Monte, que ornava em litografia a sala da pensão, fez duas perguntas à criada, que lhe servira a vitela, e saltou à rua – se assim se pode chamar a uma vereda esburacada.
O inglês tinha cinquenta anos, mas, ossudo, e, sobre os ossos, uma linha de músculos capazes de resistir a todos os exercícios. Ia, a pé, visitar as célebres quedas de água. Quer dizer: ia papar uma porção de léguas, porque as quedas de água ficam além, na extrema ocidental do concelho. Vertem, a modo de dizer, para outra província.
Atravessou campos e campos forrados de verde, tons macios, onde pastavam bois. Passavam por ele ciganos, que iam de longada, acordando quanta poeira havia no caminho. Mordiam, de olhos no vácuo, uma ideia antiga. Levavam os filhos nos quadris das mães. E, sobre as albardas dos burros, especados nas quatro patas, os cães das caravanas. Curious thing… Vá de fotografia.
Para lá de uma ponte, semelhante a um cavalo dobrado sobre um corgo, deparou-se-lhe uma cena bíblica. Ao abrigo de uma carvalheira, sobre dois plainos, separados por breve declive, tinha poisado uma família patriarcal com os seus animais. Seriam uns vinte bois… Sobressaíam deles. Em atitude hierática, dominical, os vultos da gente moça. Os velhos, a deslado, corcovavam cismando. Eles, de cajado ao queixo… Elas, com o queixo apontado ao peito e as mãos metidas debaixo do avental bordado.
Como de propósito, para o inglês apreciar, pegaram-se os bois, deram pancada, escornaram-se… Moços e moças ficaram quietos. Os velhos ainda mais… Ia-se armando, tau, tau, uma guerra de pontas, no cômoro de cima e no de baixo, quando um rapazinho, pouco maior do que a erva, acomodou os contentores. Salta aqui, salta acolá, com uma varinha do condão em punho, ditou a paz àqueles brutos. Fustigava-lhes os lombos fulvos com tal desembaraço, que o inglês berrou: brravo! Depois, quando a mansidão regressou ao quadro, toca a recolhê-los em duas fotografias: uma de frente e outra de perfil.
Antes de retomar o passo, no caminho poeirento, o inglês ergueu a mão e disse: thanks!
Desde o patriarca, tataravô seria, ao rapazinho heroico, todos corresponderam ao gesto do inglês com gravidade condigna. Alçaram também os dedos, mas, inclinando-os pra onde o inglês se dirigia, foi como dissessem: bem encaminhado!
O inglês despediu comovido. Lá adiante, à sua mão esquerda, no meio de uma chã, pastavam dois bois enormes, guardados apenas por duas criancinhas, dois rapazitos ainda mais pequenos do que o herói da refrega. Chamou-os, viu neles dois irmãos do outro menino. Admirou-os logo. Perguntou-lhes, em língua de trapos, se o Colmeal ainda era longe. Como lhe dissessem que era no cabo do mundo, sorriu, levou a mão ao bolso, e disse:
- Eu ser amigo de vossemecês. Ser vossemecê o mais velho? Guardar esta libra vossemecê. Não gastar… Ser recordação para vossemecês. Guardar.
E pousou na mão. Alternadamente, na cabeça do mais velho e do mais novo dos rapazitos.
Colmeal! Chamava-se assim, porque as casas são cobertas de colmo. Não vem de abelhas, que as não há por ali. Vem de palas negras, que agasalham os tectos. Colmeal! Quando o inglês lá chegou, viu à entrada do povo uma mulher bonita – very beatiful girl. Pediu-lhe que o acompanhasse às quedas de água. A rapariga corando disse: vou chamar a minha irmã.
E, à vista dos dentes da serra, soerguida do planalto como a tabela dum bilhar imenso, caminharam os três, por entre mato rastiço, até às quedas de água. Conversaram. O inglês pasmou da esperteza e senso das duas raparigas. Contaram que na sua terra todos se dão bem, todos se ajudam, ninguém é rico e ninguém é pobre. Não há trabalhadores assalariados. Cava e colheita faziam-se por auxílio mútuo. Dinheiro, pouco… Mas, para pagar tributo. Comprar um sombreiro e salgar a comida, vendiam o gado e algum centeio. Podia-se dizer que eram felizes.
O inglês, para ver as quedas de água, teve de se descalçar. Só assim os seus pés ingleses aderiram às pedras, prolongadas como palas por cima dos abismos.
As duas moças, como cabras, percorriam as arestas desses promontórios. Sem medo a vertigens, olhavam para o fundo das ravinas, mirando os pontos onde rebentavam, com fragor terrível, as colunas de água.
- Estamos afeitas. Às vezes, trazemos a rês até aqui. Fica lá em cima, e agente vem ver isto, que, de feio, se torna bonito.
- Very nice!, exclamou o inglês.
Quando se despediu das raparigas, quis gratificá-las, dar-lhes o preciso para comprarem um vestido novo. Não houve maneira!
- Nem por sombras, senhor! Não é preciso… Que é que nós fizemos? Ensinar-lhe o caminho? Na sua terra não nos faria o mesmo?
Recusaram a oferta como ultrajante. Mas, recusaram-na de bom modo. Aceitaram, como devido, o shake hands que o inglês lhes deu.
O viajante palmilhou de novo o caminho sem fim, perguntando e reperguntando aos seus botões, e à correia da máquina, se era possível viver em buracos uma pessoa e ser feliz com pouco dinheiro.
Quando passou à vista dos rapazinhos, a quem dera a libra, viu-os engalfinhados como dois demónios. Escorriam sangue. Ao passo que os bois, mugindo, chamavam gente para lhes acudir.
JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “A primeira libra”, págs. 80/87, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa
Imagem In: https://ardina.news/.../2016_12_26_1422279486_o-douro...
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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