Chá com Letras Online: O PENITENTE - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA IV

38.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA

Nota: A transcrição do texto “ O Penitente”, cumpre, na forma, na grafia na composição frásica, a fidelidade à fonte, que pode encontrar em rodapé.
Texto e selecção de Maria José Areal

O PENITENTE
Nesta capelinha, passava ele em oração a maior parte do tempo. Só comia de vinte e quatro em vinte e quatro horas – e o quê? Uma chícara de chá e dois ou três biscoitos. Pois, senhor, com este passadio, e rezando sempre, chegou a uma idade bonita – mais de oitenta. Coitadinho! Quando aqui passo, lembro-me sempre dele. Era muito alegre e falava sempre com muito bom modo a toda agente, quer se tratasse de pobre, quer se tratasse de rico. O que mais lhe custava era ouvir dizer que lhe chamavam santo e que fazia milagres. Pois, senhor! Bastantes fez. A um irmãozinho meu, que era uma flor e que chegou do Brasil tolhidinho de todo – era preciso meter-lhe a comida na boca e pagar nele ao colo para o meter na cama – fez o servo de Deus a esmola de lhe restituir o uso dos seus braços e das suas pernas. Mais tarde, veio a morrer tuberculoso, mas, andando pelo seu pé até à hora em que Deus Nosso senhor o chamou à sua divina presença. Lembro-me como se fosse hoje do dia em que vim aqui com o meu irmãozinho deitado numa padiola. Veio também a minha mãezinha, que era muito gorda e sofria muito da abafação. Foi o cabo dos trabalhos o conseguirmos chegar à capelinha. Era verão, o calor muito. As bagadas cobriam a cara aflita da minha mãe. Os homens que pegavam às chedas da padiola vinham tão suados, que molhavam o caminho, esta calçada que nós vamos descendo e nessa tarde subimos como se levássemos uma cruz às costas. Eu, não, que era nova e fui sempre leve – não saí a minha mãe – e estava morta por ver o servo. Pouco me custou subir isto – e mais, como vê, é costa bem ao cima. Nem a mim me custou nem ao doente. Não só porque ia deitado e com ramos de castanheiro a fazer-lhe sombra, mas também porque o empenho dele era sarar. A cada escancha dos homens, arregalava os olhos e empinava o peito como se estivesse já recebendo a graça que o esperava. Era novo, não admira que quisesse viver.
Os homens arriaram a padiola no adro da capelinha. Eu e minha mãe entrámos dentro para falarmos com o santo. Fomos encontra-lo muito derreadinho, sentado em cima de um mocho, a ler um livro à luz de uma friesta. Recebeu-nos com a alegria de quem tem o céu ganho. A mim até me deu pêros, que tirou de uma saca alva de neve. Tinha sempre fruta à mão para contentar a canalha… A mim, não só me convidou com os pericos de S. João, como me fez festas com aquela graça e aquela delicadeza de quem tem estudos e pertence a gente estremada. Minha mãe pediu-lhe que saísse a ver o doente, visto ser impossível a padiola entrar na acanhada ermida. Também lhe rogou muito rogada que abençoasse o doente. Aqui o santo afligiu-se como se a minha mãe lhe tivesse carregado num espinho espetado no coração.
- Eu não abençoo ninguém. Deus é que abençoa as criaturas.
Isto foram palavras que lhe ouvi tal e qual. Com os joelhos vergados – cuido eu que da penitência mais do que dos anos – veio vindo até à porta para falar a meu mano. Este, mal o viu, começou a chorar, mas o santinho consolou-o tanto, que daí a nada o meu irmão ria como se o santo lhe fizesse cócegas,
- Eu não curo ninguém. Vá para casa, homem! Eu não curo ninguém. O que farei é pedir e Deus que o sare. Peça-lhe também… Peça-lhe braços e pernas que o ajudem a perseguir e a abraçar ilusões próprias da sua idade.
Com estas palavras nos despediu o santo. Foi por esta hora, pouco mais ou menos, com o sol a espedir, que fomos descendo esta calçada – como agora a vamos descendo, eu e o senhor. Mas, tenha paciência. Vá mais devagarinho, se quer que eu o acompanhe. Estes castanheiros são os mesmos daquele tempo. Tão verdinhos! Parecem mais novos ainda do que eram. Eu estou mais velha e recordo-me de os ver altos e copados tanto como hoje, quando aqui vim com o meu irmãozinho – pouco mais teria do que os meus nove anos. A nossa vida é um ai.
Chegámos a casa. Metemos o doente à cama. Nessa noite, coitadinho, rezou com fervor até de madrugada, que eu bem senti. Rezou até ouvir, já com de dia, o toque das Trindades. Depois foi só pedir a roupa, vesti-la e pôs-se a caminhar pela casa fora tão lesto como nós agora aqui vamos. Diga-me se o santo fazia ou não milagres! É bem verdade, como eu já disse ao senhor, que meu irmãozinho, pouco tempo depois, morreu tuberculoso. Mas, isso não tira… O milagre de ele andar foi tão certo como haver no céu um Deus que nos governa.
Com este e outros milagres, que toavam ao longe, a fama do servinho crescia a olhos vistos. Eram tantos os romeiros em derredor da capela que o santo via-se aflito. Nem vagar tinha sequer para fazer a penitência acostumada. Às vezes, para acabar a reza, fechava-se por dentro e… batesse quem batesse! Outras vezes, ficava lá a ler ao clarão das velas até que horas da noite.
Aquela vida, tão rigorosa, tão nua, tão fôrra de vaidades e de regalias, havia quem na atribuísse a crime praticado pelo santo lá em Lisboa, no tempo em que fôra tenente da Rainha. A certeza ninguém na sabe… Ele não era daqui nem aqui tinha parentes nem aderentes. Quando eu lá fui, ainda eram vivas, embora poucas, algumas, talvez meia dúzia de criaturas que o tinham conhecido moço. Diziam que nunca em sua vida tinham visto um homem tão bonito. Velhinho como eu o vi, naquela tarde, ainda dava longes de muita formusura. Tinha a cana do nariz muito fina e a pele branca, branca – mais branca do que o papel.
Foram dar com ele morto na ermidinha. Morto, mas tão sossegado como se estivesse a dormir com a face inclinada sobre livro das orações e a olhar para o crucifixo com que ia sempre acompanhando o ler. Para o enterrarem foi obra, meu senhor! Como a capela ficava numa freguesia e a cardenhinha do santo pertencia a outra, os povos das duas aldeias enrixaram-se, pois todos pretendiam sepultar em terra sua o corpo do bem-aventurado. Afinal, venceu a razão. O corpo foi dado à cova no adro da capelinha. Viu a sepultura? Nunca lhe faltam flores, e, de vez em quando, lá aparece um ou outro devoto que lhe acende uma velinha – como eu faço. Vou lá todos os anos desde que ele morreu. Acendo-lhe a minha vela e fico à espera que se apague o último morrão. Entretanto, vou rezando àquela alminha para que peça a Nosso Senhor por mim e pelo eterno descanso dos meus ricos pais e irmão. Eu sou solteira.
O que mais me admira é que, nos primeiros tempos, depois da morte do santo, a concorrência do povo à sepultura era tanta ou mais do que à capelinha enquanto vivo. Promessas não lhe faltavam. Se hoje em dia lhe põem flores e lhe acendem de festa em festa uma velinha, então é que era! Não lhe digo nada. As velas acendiam-se umas nas outras de dia e de noite. As flores amontoavam-se na campa tanto de verão como de inverno. Mas, o que mais admira, como eu ia dizendo, é o fazerem tanta festa ao pobrezinho do santo enquanto estava quente e irem deixando de lha fazer à maneira que foi arrefecendo. Isto é mal permitido…
Nos primeiros tempos, ainda os senhores padres lhe chamavam Justo. Cuido que chegaram a pedir licença ao Padre Santo de Roma para o porem num altar. Depois… não sei que deu na devoção desta gente. Viraram-se para outros santos… Eu é que sou fiel a este. Os senhores padres, quando se fala nele, é como se lhes dessem um ponto na boca. Eu também não sei que santo era aquele. Dizem que em sessenta anos de penitência nunca se confessou, nem comungou, nem foi à missa. Era só ler e rezar e pôr os joelhos em carne viva. Acho que para ser santo não basta. Quem no entende são os senhores padres. Que eu, às vezes, ponho-me a cismar e digo, mas… eu não sei o que digo… olhe, meu senhor, ai dos santos que se não confessem!
João de Araújo Correia – CONTOS DURIENSES – “ O Penitente”, págs. 43 / 46, 4.ª edição, 2016 – Âncora Editora

Imagem in: http://patriapequena.blogspot.com/2013/12/heitorzinho.html

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