39.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
MESTRE SIMÃO
Homem de poucas ou nenhumas falas e até um pouco celhudo. Ferrava no entanto as bestas a preceito, como se cuidasse de encastoar jóias nos cascos dos animais. Por isso o procuravam os almocreves de toda a região para lhes ferrar machos e burros. Assim como os lavradores… Não levavam a mais nenhum tronco os bois descalços. Era ali, naquele ermo, que se juntava o gado trabalhador de todo o mundo, esperando que o Mestre lhe cravasse nos pés trilhados uns canelos ou umas ferraduras novas.
O tronco era uma feira. Os cães acompanhavam os bichos e os donos. Como não tinham que fazer senão guardar o gado, punham-se a caçar moscas se era Verão ou davam corrimaças, abaixo e acima do largo, se era Inverno, como crianças doidas que querem aquecer. Às vezes, até pegavam namoro diante de toda agente, sem se envergonharem, rafeiros e rafeiras que ali se encontravam pela primeira vez. Os burros zurravam e os cavalos rinchavam na sua inocência, mas… com machos e mulas era preciso cautela. Não pediam licença a ninguém para estoirarem a coices ou à dentada um cavalinho ou uma égua de raça. Os almocreves jogavam a bisca lambida com os carreiros em cima do chão lamacento ou poeirento. Às vezes, jogavam a facada.
De nada disto dava tento o ferrador. Ia ferrando de seu mole as alimárias. Não dava uma palavra. Era pálido e não suava na lida. Fazia casa.
O ferrador tinha mulher e filha que mal se distinguiam uma da outra por serem ambas novas e iguais como duas irmãs gémeas. Só a filha era mais triste do que sua mãe. Saía ao pai. Costurava do lado de lá da cancela que dava para o tronco. Uma vez por dia, levantava-se da costura, debruçava-se na cancela e chamava:
- Meu pai, venha jantar, que são horas…
No momento em que a pequena assomava ao cancelo, os jogadores deixavam de jogar. Burros e bois olhavam para ela com estupidez e doçura. Um cão avançava e ia cheirar-lhe as mãos. Tombava do céu o respeito com que os homens e bichos brindavam a menina Clara.
- Meu pai, venha jantar, que são horas…
De uma vez, ouvira esta fala um fidalgo novo que parara ao tronco para ferrar uma égua de estimação. Pôs-se a conversar com a moça tão delicadamente como se a moça fosse da sua igualha. Quis pagar o serviço do artista com uma moeda de ouro. O artista porém, como desentendido, apresentou-lhe o troco na palma da mão calosa e lançou-lhe um olhar torvo.
Os animais baixaram os olhos neste lance e os homens disseram: está perdida.
Daí a poucas luas, ao passo que o ventre de Clara crescia, o ferrador ia impontando os fregueses sem os aviar – só com um aceno de mão enconchava o martelo. O tronco ficou às moscas.
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Pararam os cabos na testada do tronco e deram voz de preso a Mestre Simão. Por milagre, que não matara o fidalgo! Estendeu as mãos às algemas e caminhou entre os policias cabisbaixo, como era costume. O cabo maior meteu-lhe na boca um cigarro acesso. Foi condenado a degredo por homicídio frustrado. Na costa de África soube que a filha morrera de morte misteriosa. Deu graças a Deus do sucedido, porque não tivera coragem para estrangular a rapariga com a mão enconchada do martelo. Cumpriu o degredo e voltou à terra.
Tinha passado um ror de anos. Trazia dinheiro, cabelos brancos, e umas barbas de linha de burel, que lhe chegavam à cintura. Ora, como tivesse deixado a mulher nova, vinha inquieto.
No mar, lembrou-se de se atirar à água para afogar o seu medonho palpite. Em Lisboa, pensou em se estabelecer como ferrador. Não viu porém que ferrar. Só automóveis, automóveis… Tanto automóvel! Partiu para casa como rês para o açougue. Aproximou-se do lar e viu na soleira da porta uma mulher ainda fresca, muito penteada, que fazia renda. Perto dela brincavam crianças alvas de neve.
- Aquela mulher não é a minha mulher. Milagre seria que o tempo voasse só para mim!
Pôs-se a contemplar a mulher e reconheceu-a. Pôs-se a contemplar as crianças e topou vários retratos do homem que lhe desonrara a filha.
A mulher teve medo à barba abrancaçada e à pele tostado do caminheiro. As crianças berravam. Então o caminheiro levou a mão ao chapéu e, como se quisesse prosseguir a jornada, continuou a arrastar os pés por aí acima, para lá da casa, ao longo do caminho, até desaparecer. Ia dizendo:
- A filha, vá! Mas a mulher!
Afogou-se no primeiro poço que encontrou.
João de Araújo Correia, CONTOS DURIENSES – “Dois tipos”, págs. 85/87 – 2.ª edição, 1951 -Âncora Editora
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
Selecção de Maria José Areal
MESTRE SIMÃO
Homem de poucas ou nenhumas falas e até um pouco celhudo. Ferrava no entanto as bestas a preceito, como se cuidasse de encastoar jóias nos cascos dos animais. Por isso o procuravam os almocreves de toda a região para lhes ferrar machos e burros. Assim como os lavradores… Não levavam a mais nenhum tronco os bois descalços. Era ali, naquele ermo, que se juntava o gado trabalhador de todo o mundo, esperando que o Mestre lhe cravasse nos pés trilhados uns canelos ou umas ferraduras novas.
O tronco era uma feira. Os cães acompanhavam os bichos e os donos. Como não tinham que fazer senão guardar o gado, punham-se a caçar moscas se era Verão ou davam corrimaças, abaixo e acima do largo, se era Inverno, como crianças doidas que querem aquecer. Às vezes, até pegavam namoro diante de toda agente, sem se envergonharem, rafeiros e rafeiras que ali se encontravam pela primeira vez. Os burros zurravam e os cavalos rinchavam na sua inocência, mas… com machos e mulas era preciso cautela. Não pediam licença a ninguém para estoirarem a coices ou à dentada um cavalinho ou uma égua de raça. Os almocreves jogavam a bisca lambida com os carreiros em cima do chão lamacento ou poeirento. Às vezes, jogavam a facada.
De nada disto dava tento o ferrador. Ia ferrando de seu mole as alimárias. Não dava uma palavra. Era pálido e não suava na lida. Fazia casa.
O ferrador tinha mulher e filha que mal se distinguiam uma da outra por serem ambas novas e iguais como duas irmãs gémeas. Só a filha era mais triste do que sua mãe. Saía ao pai. Costurava do lado de lá da cancela que dava para o tronco. Uma vez por dia, levantava-se da costura, debruçava-se na cancela e chamava:
- Meu pai, venha jantar, que são horas…
No momento em que a pequena assomava ao cancelo, os jogadores deixavam de jogar. Burros e bois olhavam para ela com estupidez e doçura. Um cão avançava e ia cheirar-lhe as mãos. Tombava do céu o respeito com que os homens e bichos brindavam a menina Clara.
- Meu pai, venha jantar, que são horas…
De uma vez, ouvira esta fala um fidalgo novo que parara ao tronco para ferrar uma égua de estimação. Pôs-se a conversar com a moça tão delicadamente como se a moça fosse da sua igualha. Quis pagar o serviço do artista com uma moeda de ouro. O artista porém, como desentendido, apresentou-lhe o troco na palma da mão calosa e lançou-lhe um olhar torvo.
Os animais baixaram os olhos neste lance e os homens disseram: está perdida.
Daí a poucas luas, ao passo que o ventre de Clara crescia, o ferrador ia impontando os fregueses sem os aviar – só com um aceno de mão enconchava o martelo. O tronco ficou às moscas.
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Pararam os cabos na testada do tronco e deram voz de preso a Mestre Simão. Por milagre, que não matara o fidalgo! Estendeu as mãos às algemas e caminhou entre os policias cabisbaixo, como era costume. O cabo maior meteu-lhe na boca um cigarro acesso. Foi condenado a degredo por homicídio frustrado. Na costa de África soube que a filha morrera de morte misteriosa. Deu graças a Deus do sucedido, porque não tivera coragem para estrangular a rapariga com a mão enconchada do martelo. Cumpriu o degredo e voltou à terra.
Tinha passado um ror de anos. Trazia dinheiro, cabelos brancos, e umas barbas de linha de burel, que lhe chegavam à cintura. Ora, como tivesse deixado a mulher nova, vinha inquieto.
No mar, lembrou-se de se atirar à água para afogar o seu medonho palpite. Em Lisboa, pensou em se estabelecer como ferrador. Não viu porém que ferrar. Só automóveis, automóveis… Tanto automóvel! Partiu para casa como rês para o açougue. Aproximou-se do lar e viu na soleira da porta uma mulher ainda fresca, muito penteada, que fazia renda. Perto dela brincavam crianças alvas de neve.
- Aquela mulher não é a minha mulher. Milagre seria que o tempo voasse só para mim!
Pôs-se a contemplar a mulher e reconheceu-a. Pôs-se a contemplar as crianças e topou vários retratos do homem que lhe desonrara a filha.
A mulher teve medo à barba abrancaçada e à pele tostado do caminheiro. As crianças berravam. Então o caminheiro levou a mão ao chapéu e, como se quisesse prosseguir a jornada, continuou a arrastar os pés por aí acima, para lá da casa, ao longo do caminho, até desaparecer. Ia dizendo:
- A filha, vá! Mas a mulher!
Afogou-se no primeiro poço que encontrou.
João de Araújo Correia, CONTOS DURIENSES – “Dois tipos”, págs. 85/87 – 2.ª edição, 1951 -Âncora Editora
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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