Chá com Letras Online: NATAL NO MUNDO A MEIO CAMINHO de PAULO ALZAMORA

34.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA

NATAL NO MUNDO A MEIO CAMINHO

Lá estavam as decorações de rua, árvores de Natal gigantescas, pais Natais descendo varandas e toda uma série de elementos, que o mercantilismo moderno universalizou. Só não estava o corridinho frenético aos templos do consumo, porque o frio violentamente cortante, até aos que disso tinham hábito, desmotivava.
A Lucas impressionava sobretudo o facto de o paganismo ter derrotado impiedosamente o religioso, mesmo em locais onde somente vinte porcento professava o culto que tem o Natal uma das suas festas mais importantes. Via isso até por si, que crescera a dar essencialmente valor à data, por promover a coesão familiar.
Mas não era só no decor que Astana repetia os tiques de Natal do resto do mundo. Encheu-se à pressão de catedrais simbólicas e esmagadoramente exibicionista de um novo riquíssimo burguês aonde depois tornou-se necessário semear uma alma. A urbe por si só não fazia isso.
E era para isso que lá estava, ainda que trouxesse consigo mais um produto que o mundo se estava a encarregar de universalizar.
Tocava a vinte e seis, apesar da organização não ter sido parca em dar-lhe tempo para se ambientar, não lhe preencheu o tempo com actividades. Vantagens de não ser a primeira figura.
Haveria que aproveitar essa circunstância, não fora ao facto de no exterior até os pensamentos congelarem.
Ainda assim saiu. Perguntou ao taxista por algo na sua cena e este levou-o ao Jazzy. Outra vez um conceito, tentando ser algo por parecer algo. Até a comida podia vir de qualquer candidato a estrela Michelin, em qualquer lugar do planeta. Neste tipo de coisas conseguia ver no mundo a aldeia que alguns referem.
Perguntou se mais tarde havia jam, não por ser Natal, mas por ser fim de semana. A resposta negativa confirmou o longo caminho a percorrer.
Regressou ao hotel e ao abandono voluntário. Para não incomodar os vizinhos de circunstância, colocou a surdina no trompete e no tablet, aleatoriamente, um play along, fechou os olhos e foi por ali fora deixando escorregar pelas mãos tudo o que os anos de treino tinham gravado no instinto, misturado com o que as mais recentes emoções motivavam.
Ainda antes de os voltar a abrir, pensou sorridente na descoberta recente em que começava a ter as pontas dos dedos a tocar ao de leve as franjas daquela magia reservada aos grandes.
Foi então que os abriu e, saídos do nada, estavam lá todos, todos os que contam, com o sorriso e o olhar brilhando como um bailado de lágrimas, o pai, a mãe, os irmãos, mesmo os que a conquista de uma vida tinha afastado. Até os avós que já tinham partido lá estavam, os dois amigos mais especiais, mais uma vez não falharam, e até o cão lá estava, num quadro que resultava na mais significativa prenda.
Nem ele faltava na fotografia de grupo. Bem de frente, no espelho do roupeiro, segurando o trompete e dizendo-lhe meneando a cabeça aprovativamente, “play it again Lucas! Play it again…”

PAULO ALZAMORA – “O Natal no Mundo a Meio Caminho” - NATAL EM PALAVRAS – Colectânea de Contos de Natal, Págs. 381/382, Tomo II, 2019 - Chiado Books



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