Chá com Letras Online: HISTÓRIA DE UM PASTOR - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA I


35.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
João de Araújo Correia, é um dos dois autores que havíamos escolhido para serem lidos e conhecidos através de algumas das suas obras, neste ano de 2020/2021.
Deste modo, e atendendo que esta Pandemia continua a impedir os nossos Encontros Presenciais, venho propor-vos, que comecemos a saber um pouco deste autor Duriense, não só de si como escritor, mas de si como cidadão, também.
Dele pessoa, falaremos adiante. Da sua obra, deixo-vos este conto, cuja personagem principal, assume a condução da narrativa, sem qualquer intervenção de quem o escuta. Único!
Vamos ler?
Texto e selecção de Maria José Areal

HISTÓRIA DE UM PASTOR
A minha vida foi sempre guardar gado. Mas o meu gado, senhor, é cabras e chibos. Não dá para mais esta montanha de ferro coberta de fragas e, aqui e além, uma penuge. A cabra é lambisqueira, mas, se lhe falta o lambisco, de tudo se sustenta, que remédio tem.
Quero dizer ao senhor que sou serrano estreme. Cheiro a bedum, visto-me de burel e calço estes socos. Melhor me aguento com eles nestas penedias do que o senhor dentro desses sapatos. Quanto quer à aposta?
Pouco viverei se não cumprir, para o mês que vem, setenta anos. Faço-os pelo São João. Pois, senhor, ninguém mos dá. A barba é ruça e o cabelo nevado, mas, tenho os dentes todos e sou leve como aquele pardal. Dou um salto e ponho-me do lado de lá do ribeiro. Quer apostar comigo? Nem eu, nem as cabras, precisamos de ponte.
Conheço a serra como as minhas mãos. Que estou eu a dizer? Conheço-a melhor do que as minhas mãos. Como o senhor vê, sou maneta. Perdi o braço num grande barulho, armado entre o meu povo e o povo de além. Somos vizinhos, mas, não nos podemos ver desde o princípio do mundo.
O pior é que fiquei maneta. Chamavam-me, dantes, o Dionísio. Como perdi o braço, também perdi o nome. Puseram-me de alcunho, o Maneta. Quem vai ali com o gado? É o Maneta…
Eu próprio, olhando para mim, vi outro homem. Quem era aquele moço, que trazia o suspenso, do ombro direito, o balandrau dum morto? Era eu, o Dionísio? Duvidei.
Primeiro que me habituasse, com esta mão esquerda, a manobrar o pau, a armar o redil, a ordenhar a cabra, a mandar uma pedra, com carta de guia, para onde eu quisesse – foi obra. Hoje, é uma brincadeira… Quer ver? Tate, dei ou não dei no galhipo do bode? Esta, agora, leva o escrito para a outra ponta. Aí vai… Tau!
Fui-me refazendo, como casa que tomba e se faz de novo, pedra sobre pedra, até que o fumo sai outra vez do telhado. Vi-me como era no dia em que o rebanho me reconheceu. Tornei a ser o rei. Mas, diante do mundo, nunca me refiz. Colava o ouvido às portas. Se ouvisse dizer Manete, morria outra vez. Murchava, sumia-me como o meu braço se tinha sumido na manga direita do meu casaco.
Na festa do ano, meti-me de novo ao barulho para matar ou morrer. Ninguém mo consentiu. Diz-me de lá um velho que era o comandante: vai-te embora, Maneta, que já pagaste o teu tributo. O braço, que aí perdeste, vamos nós procurar-to, vamos todos por ele para to entregar. Depois, falaremos. Por agora, Dionísio, sai-me da vista dos olhos, que já te não enxergo!
Por me chamar Dionísio e, como no bom tempo, me ameaçar, não tive remédio senão obedecer. Retirei, mordendo e remordendo a minha mão esquerda. Cobri-a de lágrimas como se chovesse. Peguei no meu pau, bati nas pedras, fiz lume. Teria endoidecido se não adormecesse decima daquela pedra. Chama-se, desde então, a Pedra do juízo. Pus-lhe esse nome, pegou, mas ninguém sabe porque se chama assim. Sabe-o o senhor, porque é de fora, tem cortesia, julgo-o capaz de compreender o interior dum homem.
Nunca mais, é modo de dizer, apareci diante de ninguém. É modo de dizer, porque cumpria a obrigação. Tirava o leite para o consumo e entendia-me com os marchantes, o melhor possível, a respeito dos chibos. Mais nada, coisíssima nenhuma… Esta serra é a minha família.
Mas, senhor, eu tinha dezoito anos! Puxava por mim a natureza. Para o triste pinhal, que estás às nossas costas, gemiam as rolas. Em noites de Verão, à beira da água, ralos e rãs faziam uma tocata que me entontecia. O noitibó marcava o compasso na minha cabeça. Um rasto de animal qualquer, por entre as ervas secas, punha-me fora de mim. E assistia, senhor, à cobrição do gado.
Foi então que me aventurei com a Flos, que foi, anos e anos, o enxergão da freguesia.
Dormir, dormia com ela, mas, sonhava com outra. Sonhava com uma que nunca tinha visto. Sossegava, mas saía da lura ainda com estrelas. Ia pela rês e vinha para o monte assobiar. Mas o meu assobio era meio maluco. O senhor ri-se? Vinha eu assobiando assim, numa manhã de orvalho, por este mesmo caminho, quando me apareceu, naquele penhasco, a mulher do meu sonho. Penteava o cabelo com um pente de oiro, que ia molhando na água do ribeiro. Penteava os cabelos ou os primeiros raios de sol daquele dia. É possível a minha confusão, porque olhei para ela contra a luz nascente. Mas, vi-lhe bem o rosto e entrevi-lhe o corpo, através de véu semelhante à névoa matutina. Meu Deus! Quando vi e senti, era o meu sonho, noites seguidas, ao lado da Flos, que me saía certo.
Caminhei para ela acordado como se estivesse dormindo. Nenhum fruto se livra de ser mordido em sonhos.
Mas, espera, ergueu o braço nu e manda-me quedar.
- Falta-me a minha manilha…
- A mim falta-me o braço…
- Não importa, pastor! Vai pelo monte, procura a minha a manilha, acena-me com ele e eu irei contigo…
- Tem esse condão?
- Tem.
Por esta conversa, conheci a moira, a princesa que aí ficou encantada, no meio desses fraguedos, desde que os pais fugiram, deitando fogo aos seus palácios.
Mulher mais linda não há. Nem mais suável… Mas, assim como a névoa esgaseia, assim se desfez no ar, que nunca mais a vi.
Agora, senhor, veja a minha loucura. Meteu-se-me em cabeça procurar a manilha. Não faço outra coisa há cinquenta anos. Levanto com o pau todas as pedras. Quando o ribeiro desce, não saio de lá. Procuro-a entre a jogas e escrivo a areia como se faz ao pão. Quando o ribeiro sobe, penso que ma leva, por aí abaixo, para o mar de Cristo.
Não há covil nem lapa, fojo ou madrigueira, que eu não tenha batido. Vou atrás dos lobos e aves de rapina. Desço, por cordas, ao ninho da águia, roubo-lhe os filhos para os vender, mas, o meu fito é encontrar a manilha. Porque, senhor, se lha eu der, quebra-se-lhe o encanto e o meu também. Volto à madrugada em que a vi pela primeira vez.
Sou velho. Miro-me, às vezes, ali adiante, naquela poça de água. O meu cabelo é uma estriga. Mas, sou ainda leve como aquele pássaro e tenho no peito um coração que espera. Não terá o senhor visto por aí uma manilha de ouro?
João de Araújo Correia, NOITE DE FOGO E OUTROS CONTOS – “História dum Pastor”, Págs. 9/11 – Colecção duas horas de Leitura 27, 1974, Editorial Inova/Porto

Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.


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