Chá com Letras Online: DOIS TIPOS - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA III

37.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Nota de introdução
Alertamos para a construção frásica e de alguns vocábulos, desviados da língua portuguesa. Trata-se de uma narrativa contada por um português, que emigrou para o Brasil, por lá passou e viveu muito tempo, cuja influência é notória.
Importa dizer, que o autor, no sentido de lhe emprestar uma maior fidelidade, procurou através da escrita denunciar, importação e a aculturação do emigrante. Muito interessante e pouco usual.
Desfrutem.
Texto e selecção de Maria José Areal

DOIS TIPOS
Fomos para o Brasil no mesmo barco. A bordo, nos demos bem – não houve tempo nem motivo para darmo-nos mal. Conversávamos pouco… hein? Eu ia pensando na vida que me esperava no Rio. Ele ia sonhando.
Quando chegámos no Rio, foi preciso acordar seu Zeca para o entregar à cidade. Gastou um dinheirão na leva da mala. Eu carreguei a minha sem me envergonhar. Chamaram-me de galego os vagabundos…. Eh! Mané! Eh, Galego! Não me envergonhei. Minha mala era um saco feito de pedacinhos de pano pela minha velha, já se viu? Eh! Mané! Eh, Galego! Não me incomodei. Seu Zeca desembarcou como rico. Eu desembarquei como pobre.
Meu emprego foi sempre o mesmo – sempre no varejo. Secos e molhados… mercearia. Nada de luxo… Camisa de meia, calça, tamancos. Foi assim que eu trabalhei. Seu Zeca se empregou na construção civil como fiscal – tinha habilitações. Eu, não. Minhas habilitações era ler mal, escrever pior e contar bem. Em contas de cabeça, fui sempre um alho – o contrário de seu Zeca. Ele lia e escrevia melhor que muito doctor. Em contas porém saiu mesmo caipora. Não sabia somar nem multiplicar. Foi isso que perdeu-o… Só sabia dividir. Dividir o que ganhava, jogando no bicho e noutros jogos ruins. Dava esmolas à toa. Não podia ter dinheiro. Penso que fazia-lhe febre. Uma tarde me convidou para beber um chope. Não querendo fazer feio, aceitei. Antes não tivesse ido. Pai do Céu! Atrás de um chope, mil bebidas que o sior não conhece. No fim me disse: Você está vendo como se gasta o dinheiro? Dinheiro é para gastar.
Dinheiro era para gastar? Não procurei mais o seu Zeca. Evitava ele. Tive medo de me tornar gastador. Dinheiro é sangue. Gota que saia faz falta a emigrado. Para mandar uns vinténs à velha, que ficou chorando na terra, botei negócio por minha conta fora do armazém. Passei domingos e horas vagas feito engraxate no Rio, hein? Dinheiro para a velha que recebia-o, pensando que o filho estava rico.
Não vi mais o seu Zeca. Patrícios me diziam que ele vivia na grande. Ganhava e gastava à toa. Gastava até ao último milréis. Isso me contavam os patrícios, que, como disse ao sior, não procurei mais o seu Zeca. Eles, feitos papalvos, me contavam que o seu Zeca vestia como um príncipe. No Carnaval, jogava dinheiro no ar em serpentinas, confétis, perfumes, porcarias. De noite, sempre bestando em botequins com pessoal danado. Eu dizia no meu quiete: espera seu Zeca. Você assim não vai bem. Você, meu homem, assim dá trambolhão. Tem cautela, seu Zeca. Dinheiro é sangue.
Eu dizia isto cismando, como se aquele patrício doidinho estivesse lá no armazém mesmo, ouvindo meu conselho.
Foi no Carnaval que ele conheceu a moça com quem casou. Pobre moça! Mais valia ter-se suicidado. Mocinha pobre casada com doido… não vale mais morrer? Enquanto seu Zeca gastava dinheiro, a siora, em casa, passava necessidades. Dinheiro não chega para tudo. Siora era fraca. Trabalhava mais que podia. Tinha habilidade. Era modista. Mas, coitada, não podia trabalhar, porque era fraquita. Gerou o primeiro filho bem…. Gerou o segundo e lhe custou a vida. Depois do parto, seu Zeca, sempre gastando, não teve dinheiro para a siora ir no Friburgo, como queria o doctor – um alemão. A siora morreu magrinha como este dedo. Fui em casa de seu Zeca e vi-a no caixão. Que linda!
Seu Zeca, viúvo, esperou que os dois meninos, fraquinhos como a mamãe, fossem no cemitério sua companhia. Ele continuou gastando. Dizia que o seu dever era esse. Maneira de não haver rico nem pobre era gastar. Dinheiro, circulando de mão em mão, era água no campo, que rega todo o vegetal. Eu não compreendia isto – e mais seu Zeca falava muito bem. Temendo que me pegasse a doença de gastar, de novo lhe fugi. Os patrícios me afirmavam que ele não escrevia nem enviava aos pais nem uma lembrança! Que a sua família era toda a gente. Não acreditei. Seu Zeca não era má pessoa… Já eu era patrão quando os patrícios me disseram que o seu Zeca estava tuberculoso. Pediram-me um pouco de auxílio para comprar-lhe passagem para Portugal. Fiz a despesa sozinho. Eles compraram ternos e roupa branca para seu Zeca.
Veio para Portugal. Procurou a família. Um ano depois vim eu para descansar e ver a velha. Seu Zeca ia morrendo aos pedacinhos. Vi-o numa cadeira de cura. Não deu-me nem uma palavra. Seu mutismo era vergonha – silêncio que dizia entrega voluntária de preso à condenação. Tive pena! Seu Zeca feito um trapo… Mais que a doença, o achaque moral. Deixava cair a baba e o ranho. Limpei-o com o meu lenço. Que esquisita morte!

João de Araújo Correia, CONTOS DURIENSES – “Dois tipos”, págs. 85/87 – 2.ª edição, 1951 -Âncora Editora

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