Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XIX

LEITURAS DE TORGA XIX
19.º Encontro com Miguel Torga

BICHOS – ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA – 2.ª EDIÇÃO

Miguel Torga, sente que o Homem na sua evolução, se havia afastado do seu instinto animal, - da pureza do mesmo. Escreve BICHOS na busca e reposição, ou não, dessa essência, colocando em causa a relação entre os indivíduos na vivência em sociedade, na relação com Deus e a própria Liberdade.
Coloca-nos perante um enorme dilema: O que há de bicho no Homem e vice-versa, que é como quem diz, quanto de humano há no bicho.
Esta viagem que Torga nos propõe, deixa-nos, muitas vezes, em verdadeiro desassossego. Bastará ler o primeiro conto – NERO - para nos inteirarmos disso mesmo. E quanto há na MADALENA de bicho? E há?
Os comportamentos do ser humano perante a vida, eis a questão. Cada animal, fala, diz, reclama, amua e sofre! Cada ser humano (MADALENA, NICOLAU…), silencia, age, reage, opta, sofre.
A obra, BICHOS, é composta de 14 Contos. Inicia com NERO - o Cão, (submissão) e termina com VICENTE – o Corvo (liberdade).
Iniciamos estes Encontros, com o conto, “JESUS”.
Porquê JESUS? Por me parecer inteiramente singular, onde os comportamentos se afastam do atrás mencionado. Há bicho – O pintassilgo, e há um menino. Onde nos levará?
Nota 1: Pretendemos com estes NOVOS ENCONTROS, dar início a uma nova temporada, enquanto a COVID 19, se decida a nos deixar viver, o mesmo será dizer, até estarem criadas as condições que nos permitam “Encontros” no tempo e no espaço, em verdadeira segurança.
Nota 2: O conto JESUS, é aqui transcrito na integra.
Boas leituras!
Texto e selecção de Maria José Areal

“Querido leitor.
…Não se pagam gentilezas com descortesias, e eu sou instintivamente grado e correcto (…)
Este livro teve boa fortuna de te agradar, e isso encheu-me sempre de júbilo. Escrevo para ti desde que comecei, sem te lisonjear, evidentemente, mas também sem ser insensível às tuas reacções. Fazemos arte do mesmo presente temporal e, quer queiras, quer não, do mesmo futuro intemporal. Agora, sofremos as vicissitudes que o momento nos impõe, companheiros na premente realidade quotidiana; mais tarde, seremos pó da história, o exemplo promissor ou maldito, o pretérito que se cumpriu bem ou mal.
…porque onde está ou tenha estado um homem é preciso que esteja ou tenha estado toda a humanidade (...)

Miguel Torga, “Bichos” – Prefácio, págs 7/8, 3.ª edição, 2010 - Leya

JESUS
Comiam todos o caldo, recolhidos e calados, quando o menino disse:
- Sei de um ninho!
A Mãe levantou para ele os olhos negros, a interrogar. O Pai, esse, perdido no alheamento costumado, nem ouviu. Mas o pequeno, ou para responder à Mãe, ou para acordar o Pai, repetiu:
- Sei de um ninho!
O velho ergueu finalmente as pálpebras pesadas, e ficou atento, também.
A criança, então, um tudo-nada excitada, contou. Contou que à tarde, na altura em que regressava a casa com a ovelha, vira sair um pintassilgo de dentro de um grande cedro. E tanto olhara, tanto afiara os olhos para a espessura da rama, que descobrira o manhuço negro, lá no alto, numa galha.
A Mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma. O Pai regressou ao caldo.
Mas o menino continuou. Disse que então prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela árvore acima.
De novo o Pai levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal qual a Mãe, inquieto, com a respiração suspensa, a ouvir.
E o pequenino ia subindo. O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o corpito, colado a ele, trepava devagar, metade de cada vez. Firmava primeiro os braços; e só então as pernas avançavam até onde podiam. Aí paravam, fincadas na casca rija.
A subida levou tempo. Foi até preciso descansar três vezes pelo caminho, nos tocos duros dos ramos. Por fim, o resto teve de ser a pulso, porque eram já só vergônteas as pernadas da ponta.
Transidos, nem o Pai nem a Mãe diziam nada. Deixavam, apavorados, mudos, que o pequeno chegasse ao cimo, à crista, e pusesse os olhos inocentes no ovo pintado. O ninho tinha só um ovo.
Aqui, o menino fez parar o coração dos pais. Inteiramente esquecido da altura a que estava, procedera como se viver ali, perto do céu, fosse viver na terra, sem precisão dos braços cautelosos agarrados a nada. E ambos viram num relance o pequeno rolar, cair do alto, da ponta do cedro, no chão duro e mortal de Nazaré.
Mas a criança, apesar se mostrar, sem querer, que todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.
E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egipto, que ouvira ler a um vizinho.
Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio de felicidade, sabia de um ninho.
A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho.
E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço da virgem Mãe.
Miguel Torga, “Bichos” – Jesus, págs. 55/59, 3.ª edição, 2010 - Leya

Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.


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