Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XVIII



LEITURAS DE TORGA XVIII

18.º Encontro com Miguel Torga nos seus Diários
E eis-nos chegados ao fim deste caminho que tecemos e, nos comprometemos fazer acontecer.
Em tempos de Pandemia, e por via do confinamento a que todos nós fomos sujeitos, foi desta forma e deste jeito que nos “aconchegamos” e soubemos uns dos outros nas palavras de Miguel Torga.
Para mim, a quem coube selecionar, escolher e tomar decisão sobre que textos, que poemas publicar, concorreu para a mais bela forma de me saber, novamente, bem por dentro dos Diários, - dezasseis volumes -, em dezoito Encontros. Sempre uma descoberta, sempre mais um encontro onde a paragem para o saboreio, reflexão e vénia foi acontecendo com gáudio e enorme contentamento.
O meu obrigada de coração cheio, para quem me seguiu.

Texto e selecção de Maria José Areal

DIÁRIO XVI:
Coimbra, 28 de Dezembro de 1990 – Visita do pároco de S. Martinho. Telefonou-me a dar as boas festas, adivinhou pelo tom da minha voz o meu estado de saúde, e meteu-se a caminho. Almoçou, bebeu do melhor vinho da garrafeira, e regressou agora, rijo e fero como sempre, depois de uma longa conversa. Meu vizinho de porta, é ele que me olha pelo quintal. Contou-me do acasalamento dos melros que ritualmente fazem ninho na sebe de avelaneiras que nos estrema, da recuperação da eira arruinada de que somos consortes, das páginas que escrevi sobre a nossa escola, que tem sempre na memória, dos enxames novos que acrescentou ao colmeal. Quatro horas de paz bucólica. Da paz rural em que vive e que não lhe envejo, mas gostava de ter merecido também da vida. De todos os da nossa criação é ele o único que me lê. Sobe, de livro na mão, os montes onde caçámos juntos, e saboreia no alto, sem pecar, as minhas heresias. Preguei-lhe neles, incansavelmente, durante anos, a santidade da poesia. E ficou convertido.
Miguel Torga – Diário XVI, pág. 53, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1995

Coimbra, 11 de Maio de 1992 – Não vai valer de nada. Foi deitar água em cesto roto. Mas varri a minha testada. É um protesto. O tempo dirá se era justificado. Mas creio que sim, e fica pelo menos registado o repúdio de um poeta português pela irresponsabilidade com que meia dúzia de contabilistas lhe alienaram a soberania da pátria. Tenho como certo que Maastrich há-de ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. Só que as grandes potências podem dar-se ao luxo de todos os jogos malabares e safadezas, e assinar até tratados ardilosos com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas, não. Se, por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho da independência, perdem-na de vez. Que é, infelizmente, o que, se o destino nos não acudir com um milagre, nos vai acontecer.
Miguel Torga – Diário XVI, pág. 121, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1995

Coimbra, 20 de fevereiro de 1993 – Angola continua a ferro e fogo. Os dois tribalismos, o oficial e o rebelde, combatem-se numa luta de morte. Não realizamos ali, infelizmente, o milagre brasileiro da fraternidade racial e nacional. Deixamos as populações na primitiva decência da selva, à mercê da avidez e rivalidade das grandes potências, sem pátria, sem civismo e sem amor aos irmãos de raça e de berço. E agora a nada podemos acudir com os panos quentes da nossa diplomacia de muitas palavras e escassos meios.
Miguel Torga – Diário XVI, pág. 151/152, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1995

Coimbra, 6 de Janeiro de 1991
ARRITMIA
A vida é lenta quando a morte tem pressa.
Faço ao corpo promessa
De que vai acabar em breve o sofrimento
Que o tortura.
Mas, da sua clausura,
O coração,
Na cega obsessão
Com que nasceu,
Diz que não, diz que não,
A baralhar o tempo em cada pulsação
Como um relógio que endoideceu.
Miguel Torga – Diário XVI, pág. 56 2.ª Edição Revista, Coimbra/1995

Coimbra, 10 de Dezembro de 1993
REQUIEM POR MIM
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Miguel Torga – Diário XVI, pág. 201, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1995



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