Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XII

Agarez!...O apego das raízes ao chão nativo! Depois de tantas andanças, de tanto sofrimento, de tanto estudo, o coração umbilical continuava ligada à matriz, tinha, realmente, uma paisagem, um meio, um sítio geográfico vital gravados nos cromossomas! O corpo podia correr todos os caminhos do mundo, e o espírito voar em todas as direcções. Aonde chegassem, denunciariam sempre a marca da origem, a singularidade inconfundível, espécie de sabor à terra de proveniência, como o dos frutos.
A Criação do mundo

DIÁRIO X:
Coimbra, 16 de Dezembro de 1963
PORTUGAL
Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou liberdade de um perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.
Miguel Torga – Diário X, pág. 18/19, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1968

Chaves, 27 de Setembro de 1967
CEIFEIRA
Acendo a luz da coragem
E dou luz ao que pareces,
Mulher que nunca pariste!
Já que ninguém te resiste,
Que te resiste a verdade.
Que seja ela a mostrar
Que lucidez pode olhar
O teu rosto de alvaiade.

Tens o nome de ceifeira,
E afrontas esse nome
De sol, suor e fartura.
Sujas o chão da planura
Só a mover a gadanha.
E a jorna de terror
Que te paga o lavrador,
É roubada, não é ganha!

Ceitas a seara humana,
E não cantas a ceifar!
Fica o restolho a chorar
Quando um rasto de pragana
Te segue pelos outeiros…
Mas levas mortos contigo!
E enches os teus celeiros
Da podridão desse trigo!
Miguel Torga – Diário X pág. 160/161 1.ª Edição Revista, Coimbra/1968

O homem tem um espaço limitado de lucidez para se aviar no mundo. Ou urde a sua teia nesse intervalo urgente, ou fica sem burel para agasalhar a memória.
Diário X

Coimbra, 3 de fevereiro de 1966 – Há anos que concentra as forças para não sei que salto decisivo. Mas, à medida que o tempo vai passando, a vala a transpor vai-se alargando mais. De maneira que dificilmente se vislumbra solução feliz para o problema. Como as dificuldades crescem a par das possibilidades, quando estas atingirem o máximo, o fosso será intransponível. E chega-se à conclusão de que o melhor ainda é ir realizando o possível com as energias e debilidades de cada momento. O homem tem um espaço limitado de lucidez para se aviar no mundo. Ou urde a sua teia nesse intervalo urgente, ou fica sem burel para agasalhar a memória.
Adiar as tarefas, à espera de melhores dias ou de maiores capacidades, pode significar a total desilusão da esperança, que só no arriscado terreiro da acção consegue iludir-se. As obras-primas nascem na mesma humildade e contingência das que o não são. É esse, de resto, o seu mistério apaixonante. O próprio autor ignora sempre a grandeza do milagre que fez. Paga por ele o preço cruel da incerteza eterna. Ora, se assim é, se o destino tudo dispõe para evitar que os Shakespeares caiam no pecado mortal de orgulho – consente, sim, que nós nos orgulhemos agora da sua existência -, não vale a pena esperar pelo tamanho de Golias para iniciar o combate criador. Quando calha, até da funda de qualquer frágil David saem pedras fulminantes.
Miguel Torga – Diário X pág. 81/82, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1968

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