Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XI

11.º Encontro com Miguel Torga, nos seus Diários.

Sim, é verdade! Aqui estamos para mais um Encontro (11.º) com Miguel Torga, escritor, no seu Diário IX.
Tendo escrito Diários em número de XVI, significa que já nos encontramos para além da sua metade. E se por um lado se nos afigura tarefa desenhada na sua concretização, por outro, vamos caminhando para o fim com pena nossa. Foi um deleite, este reevocar do autor na forma mais directa e verdadeira. Porque aquele que escreve um diário, entra no confronto com a verdade e dela não pode fugir.
Desfrutem! É nosso desejo.
Texto e selecção de Maria José Areal

APONTAMENTOS
… Há uma noite que para sempre ficou gravada dentro de mim. Eu andava em campanha eleitoral, ele encontrou-me na rua e disse-me: Foi caçar para ti, anda jantar lá a casa.
Comi narcejas e uma galinhola que a Doutora Andrée cozinhou pelo menos tão bem como a minha avó e este é o maior elogio que lhe posso fazer. Bebi uma Barca Velha que Torga escolheu (tinha uma garrafeira de qualidade excepcional). E ou fosse das narcejas, da galinhola, do vinho ou de um não sei quê que pairava na sala de jantar, aquela foi para mim uma noite especial. Acabámos numa discussão inverosímil, ele a justificar D. Teresa e eu a terçar armas por D. Afonso Henriques. …
Rocha, Clara “Miguel Torga Fotobiografia” – excerto do Prefácio de Manuel Alegre (O Rosto de Viriato)

“Os montes era um gosto vê-los. Cobertos de urze, roxos, cobria-os como um tecto de cetim. E os ribeiros, que sulcavam de frescura, pareciam veias fecundas de um grande corpo deitado.
Contos da Montanha

“A via Sacra era uma borga. No caminho para a igreja, a Maria da Purificação ia à frente a ler o breviário. Enquanto todo o acompanhamento se ajoelhava, batia no peito e beijava o chão, apanhávamos nós pelos barrancos flores de cuco e lírios silvestres. Não sei porquê, a primavera sabia-nos melhor assim, usufruída rebeldemente nas barbas dos adultos penitentes.
- As gotas de sangue, que derramou, foram duzentas e trinta mil…
- Louvado seja tão bom Senhor…
- As lágrimas que chorou pelos nossos pecados, foram seiscentas mil e duzentas…
Achávamos demais e ríamos à socapa.
A desobriga lavava-nos a alma das impurezas do ano.
- Amanhã vais-te confessar – ordenava a minha Mãe.
E eu ia. Recitava diante do ralo purificador o rol de pecados veniais, fixava a penitência, recebia a absolvição, e na missa de domingo tomava Nosso Senhor”.
A criação do Mundo

DIÁRIO IX:
COIMBRA, 16 DE Março de 1960
PEDAGOGIA
Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende…
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de ser!
Miguel Torga – Diário IX, pág. 17, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1977

Coimbra, 6 de Julho de 1963
POESIA
Não te quero trair
Com palavras cansadas.
Abstracta presença
No seio da concreta natureza,
Voz de pureza.
No silêncio imundo,
Luz que nas madrugadas
Anuncias mais luz,
Rigor da imprecisão,
Nenhum verso traduz
Sequer
A doce melodia do teu nome.

Por isso, quando todos os sentidos
Te desejam visível, figurada,
Rasgo dentro de mim o véu
De não sei que lonjura,
E fico a namorar a curvatura
Da linha desenhada
Pelo gume do céu
A cortar a planura
Imaginada…
Miguel Torga – Diário IX, pág. 178/179, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1977

Gerês, 5 de Agosto de 1963 – A frivolidade do nosso comportamento consciente, e a seriedade do nosso comportamento inconsciente! Damos uma resposta qualquer, cuidamos às vezes que apenas à medida da presunção social, e o mundo de alusões subtis, de mágoas dilacerante, de desenganos irremediáveis nela contidos!
.- Há muitos anos que o vejo por aqui! Gosta disto, ou fazem-lhe bem as águas?
- As duas coisas. Mas venho, sobretudo, certificar-me da constância da paisagem e da inconstância dos homens…
Miguel Torga – Diário IX, pág. 185, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1977

Gerês,14 de Agosto de 1963 – Nestas estâncias hidrológicas é que se avalia com rigor aproximado a fundura da nossa degradação social. Reúnem-se nelas vozes de todas as classes e de todos os pontos cardeais do País, e há tempo e vagar para dizer e ouvir. É um nunca acabar de labroeiras, de torpezas, de covardias, de conveniências, de simulações. Cada qual tem na sua aldeia, na sua vila, na sua cidade um trágico exemplo ilustrativo, de que há testemunho. E, às tantas, o coro é tão uníssono, tão agoirento e pungente, que parece uma encomendação funérea da alma da pátria.
Miguel Torga – Diário IX, pág. 188, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1977

Dois rapazes brincam com berlindes em 1972

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