Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA IX

Aqui estamos no 9.º Encontro Programado em tempo de confinamento.
Encontro que acontece semanalmente, e que leva até vós as palavras de Miguel Torga, na forma de prosa e de poema.
Neste seu Diário VII encontrei o seu amor à natureza, a sua devoção à terra que o viu nascer, a sua inquietação pela parca esperança de ver o Homem sem padecer. Vi também, o aplauso à memória de si criança, as suas inquietudes na comparação do seu Portugal com o resto do mundo e o seu deslumbre na visita à cidade de Constantinopla. De tudo me acrescentei, e bem disse esta minha revoada nos seus Diários que lera faz tempo.
Decidi as escolhas que vos apresento, e trouxe uma pequena introdução, que sei que ides amar.
Texto e selecção de Maria José Areal

Introdução para este Encontro
"Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá pão de milho, de centeio, de cevada e de trigo. Pão integral. Por ser pão e por ser amassado com o suor do rosto. Sabe a trabalho, mas é por isso que os naturais o beijam quando ele cai ao chão…"
Portugal (Um Reino Maravilhoso – Trás - os - Montes)

DIÁRIO VII:
Coimbra, 17 de Setembro de 1953
PEREGRINAÇÃO
Corro o mundo à procura dum poema
Que perdi não sei quando, nem sei onde.
Chamo por ele, e a voz que me responde
Tem o timbre da minha., desbotado.
Às vezes num mar largo ou num deserto
Parece-me que sim, que o sinto perto
Da inspiração;
Mas sigo afoito em cada direcção,
E é o vazio passado
Acrescentado…
Areia movediça ou solidão.

Teimoso lutador. Não desanimo.
Olho o monte mais alto e subo ao cimo,
A ver se ao pé do céu sou mais feliz.
Mas aí nem sequer ouço o que digo;
O silêncio de Orfeu vem ter comigo
E nega os versos que afinal não fiz.
Miguel Torga – Diário VII, pág. 57, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1983

Coimbra, 3 de Maio de 1954
PARQUE INFANTIL
Joga a bola, menino!
Dá pontapés certeiros
Na empanturrada imagem
Deste mundo.
Traça no firmamento
Órbitas arbitrárias
Onde os astros fingidos
Percam a majestade.
Brinca, na eterna idade
Que eu já tive
E perdi.
Quando, por imprudência,
Saltei o risco branco da inocência
E cresci.
Miguel Torga – Diário VII, pág. 98, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1983

Gerês, 2 de Agosto, de 1955 – Há qualquer coisa de vida de palco nesta vida de termas. Chego, e é como se ouvisse as três pancadas de Molière e o pano subisse. Sentados às portas dos hotéis, outros comparsas, com faces conhecidas e desconhecidas, aguardam. Cumprimento-os, instalo-me também numa cadeira de preguiça, e damos início à representação. Pouco ou nada se diz ou faz de extraordinário. O verdadeiro interesse de cada acto está por detrás das palavras e das atitudes. São pequenos gestos rituais que acontecem maquinalmente – a mão que se levanta para afastar um insecto, os olhos que se movem para espreitar as horas, um desvio discreto da incidência de um raio de sol que rompeu caminho através da folhagem.
Todos entendem esta linguagem subtil, embora não atentem na sua significação profunda. Exactamente como acontece no mundo fictício da sena, onde é possível um actor desempenhar com êxito um grande papel sem o compreender.
Nos primeiros tempos admirei apenas o ritmo que havia na movimentação. Depois descobri que estava diante da expressão solene e muda de uma vida intemporal. As pessoas que eu via com forma de gente eram títeres furtivos, que vinham de longe, como eu, fazer o seu papel, e de repente desapareciam para regressar à realidade.
Miguel Torga – Diário VII, págs. 191/192, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1983


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