Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA VI

6.º Encontro com Miguel Torga, nos seus Diários.
Atrevi-me, neste nosso 6.º Encontro, a deixar-vos um poema que muito me encanta e seduz: TESTAMENTO. Longo, porque longas e largas são as mágoas do poeta. Mesmo assim e por isso mesmo, Miguel Torga, deixa-nos uma mensagem clara, precisa e denunciadora nas estrofes que escreveu, olhando o mar naquele lugar cimeiro, granítico, portentoso – As Berlengas.
No diário do dia 30 de Janeiro, em Coimbra, o autor dá-nos conta de uma tremenda perda para a humanidade: a morte” de GANDHI, “varado por balas”.
Texto e selecção de Maria José Areal

Novos contos da montanha (Prefácio à 2.ª edição)
"Ora eu sou escritor…Poeta, pensador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se exprime. Ao lado do soneto e do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário."

DIÁRIO IV:
Berlengas, 6 de Julho
TESTAMENTO
Meu testamento de Poeta, quero
Que fique na pureza destas ilhas,
Gravado pelas ondas sem sossego.
Para que o leia o sol,
E o vento,
E quem goste da Vida em movimento,
- Só escrito
Nestas folhas de espuma e de granito.

Em verso com medidas de marés,
Rodeada de cor e solidão,
Talvez tenha beleza a doação,
E sentido…
Talvez que finalmente eu seja ouvido,
E cada herdeiro queira o seu quinhão.
(A riqueza que tenho,
Só em fraga despida
E com velas à vista
A posso dar a alguém…
Sou artista
Por humana conquista
E por me ter parido minha mãe.)

Mas se ninguém quiser o meu legado,
Nestes penedos, recusado,
Terá asas em cima…
Asas abertas sobre cada rima
De silêncio salgado.

Aqui, portanto, fique,
Como um ovo num ninho de saudade.
E que ninguém o modifique.
Só este texto indique
A minha última vontade.
*
Deixo…
(Os poetas, coitados,
Têm quintas de papéis desarrumados
E barras de oiro…quando a tarde cai…)
Deixo…
Mas a herança aqui vai.
*
Nenhum de nós desista, se é verdade!
Ligado às próprias achas da fogueira,
Mantenha-se por toda a eternidade
Senhor da sua inteira liberdade
De dizer o que queira.

Tenha amor aos sentidos
E a toda a criadora excitação.
Pouse na terra os olhos comovidos,
Como remos nos flancos coloridos
Da vaga onde navega a embarcação.

Leal e simples, saiba desvendar
Mistérios que é preciso descobrir:
O gesto natural de semear,
E a fome de colher e mastigar
O fruto que do gesto há-de sair.

Nada queira distante da razão,
Por saber que o estiola o que não tem
Sol a jorros a dar-lhe projecção
Na rasa lei do chão
Donde a raiz lhe vem.

Veja passar o vento
Carregado de sonhos e poeira…
Veja-o passar, atento
À beleza do próprio movimento…
Entenda num segundo a vida inteira!

E siga como alegre quiromante
Do mesmo no ludíbrio se procura.
Romeu viúvo que perdeu a amante
E lhe fica constante,
Até que a vai amar na sepultura.
*
E agora assino e selo o testamento.
Leve-me o barco, e fique a barlavento
Esta bruma de mim.
E que o farol, à noite, quando alguém vier,
Ilumine o que eu digo, e o deixe ler
Até ao fim.
Miguel Torga - Diário IV, págs. 46/47/48/49, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1973

Coimbra, 30 de Janeiro 
Mataram Gandhi, a tiros. Houve um homem na Índia capaz de puxar ao gatilho contra a própria alma! A mercadora mas tolerante Inglaterra, se acaso não entendeu, pelo menos sempre respeitou sempre aquela vida que, mal entrava em jejum, fazia estremecer a terra. O fanatismo religioso. Esse pôde alvejar a luz, e apaga-la! Não havia no mundo quem merecesse menos do que o Mahatma a violência brutal de um assassínio. O seu apostolado foi a expressão mais alta que se viu até hoje da intangibilidade da pessoa humana. O próprio Cristo pegou num chicote, e apensou à sua pregação de amor o rabo-leva de uma agressão. Gandhi, nesse caminho, foi o primeiro a conservar intacta a beleza da sua doutrina. Era um Sócrates da acção. E, exactamente como o Grego, morreu à mão dos contrários. O filósofo do justo bebeu a cicuta da injustiça; o resistente de mãos caídas tombou varado de balas. Mas, da mesma maneira que Atenas, matando Sócrates, lhe deu razão, também a Índia, assassinando Gandhi, lha dá. A justiça não ficou ao lado da cicuta, nem a resistência há-de ficar ao lado das pistolas. O mal de quem apaga as estrelas é não se lembrar de que não é com candeias que se ilumina a vida.
Miguel Torga - Diário IV, pág. 83/84, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1973

#fiqueemcasa #ficaemcasa



Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.

Comentários