Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA V

5.º Encontro com Miguel Torga, nos seus Diários.
Neste nosso 5.º Encontro com Miguel Torga, vamos olhar, na forma mais demorada, o seu Diário III.
Usei da mesma metodologia: um poema e um texto. E sempre me deparo com a hesitação na escolha de ambos. Os poemas acusam, sem excepção, laivos de sedução, e os textos abraçam situações emocionais e outras mais convencionais e denunciadoras, que nos “quase” subornam na sua eleição.
Desta feita, ao seleccionar o Poema “Marão”, entendi que o texto, datado do dia 8 de Junho e escrito na sua terra natal (S. Marinho de Anta) lhe fazia excelente companhia. Ambos “cantam” a beleza daquela terra e a atracção que exerce em Torga, bem como a denuncia de parcas esperanças na abastança daquela gente.
Bem grande é o Marão, e não dá palha nem pão…
Texto e selecção de Maria José Areal

DIÁRIO III:
S. Martinho de Anta, 23 de Maio
MARÃO
Serra, seio de pedra
Onde mamei a infância.
Amor de mãe. Que medra
Quando medra a distância.
Dura severidade
Tapetada de acenos
Às ilusões da idade
E aos deslises pequenos.
Velha raiz segura
À universal certeza
De um gesto de ternura
E um pouco de beleza.

Miguel Torga - Diário III, pág. 57, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1973

S. Martinho de Anta, 8 de Junho
As raízes começam a secar. Minha mãe está no fim, meu pai ensurdece. A beleza das giestas floridas não resiste ao espectáculo lancinante de ver crianças famintas a pastar erva como os animais. Só o Marão, ao longe, conserva a majestade de sempre e a sua pureza habitual de deus. Mas nem a olhá-lo pude esquecer por muito tempo a miséria desta gente. Uma fibra humana que me repuxa a alma cada vez com mais força desenhou-me cruamente naquele azul de ilusão e de evasão a legenda que conheço desde menino:
- Bem grande é o Marão, e não dá palha nem pão…
É um ferrete de esterilidade que a tradição pôs naquelas pedras deslumbradoras, e que eu, ao fim e ao cabo, tenho de aceitar como justo. A beleza é o ornamento da vida, mas a necessidade de comer é o seu suporte. Se eu andasse como estes garotos a roer leitugas pelas valetas, teria olhos para contemplar por um momento sequer aqueles cumes maravilhosos? Certamente que não. Por serem tão nobres e tão altos, e também porque estou bem jantado, demorei neles a atenção algum tempo transportado em tanta cor e relevo. Mas a urgência doutros valores acordou-me a avisar-me peremptoriamente de que é preciso casar de uma vez para sempre o espírito com a matéria, tornar unidade para o que nasceu para ser uno. O lume tem a sua lenha. Não somos anjos, e é preciso ter a lealdade de o reconhecer. De resto, espírito, espírito, e por detrás desta fachada esconde-se quase sempre uma cloaca sórdida de interesses mais grosseiros do que uma natural digestão. É urgente acabar com a hipocrisia do mundo moderno e regressar à sinceridade grega: ser conviva de um banquete universal, e fazer por pensar bem durante ele.
Miguel Torga - Diário III, págs. 168/170, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1973

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