4.º Encontro com Miguel Torga, nos seus Diários.
Neste nosso 4.º Encontro com Miguel Torga, continuámos a “olhar” o seu Diário II. Selecionei o poema “Por uma papoila”, como poderia escolher um outro qualquer. Sei que sou devota do seu talento, e isso faz-me refém de toda a sua obra.
Escolher, assume ser a minha tarefa mais ardilosa, pela qual solicito o vosso entendimento.
E para continuar com o mesmo figurino (poema/prosa), decidi optar pela transcrição de um texto, que aborda um acto médico especial, cuja mensagem poderá ser, o espanto, a aceitação, o reconhecimento.
Texto e selecção de Maria José Areal
DIÁRIO II:
Coimbra, 24 de Março de 1943
POR UMA PAPOILA
Não a façam sofrer.
Não olhem a nudez da sua cor.
Se a quiserem ver
Adivinhem de longe o seu pudor.
Olhos nos olhos, não:
Cora, descora, agita-se de medo,
E é toda o desespero e a solidão
De ter na própria vida o seu degredo.
É uma donzela que não quer casar.
Veio ao mundo viver
A beleza gratuita de ver passar
Sem nenhuma paixão a conhecer.
Miguel Torga - Diário II, pág. 152, 4.ª Edição Revista, Coimbra/1957
Coimbra, 28 de Abril de 1943
O tecto do velho casarão hospitalar só não caiu porque isto da matéria às vezes resiste muito.
Era na hora da aceitação. A ficha pedia respostas curtas e concretas.
- Profissão?
- Meretriz.
- Filhos?
- Oito.
- Quantos?!
- Oito.
- E todos desde que…
- Todos.
Serena, como se tivesse dito uma coisa sem qualquer importância, continuou de pé, encostada à parede.
- Sente-se.
- Com licença.
Amparou a barriga desmedida, acomodou-se no banco., e continuou a responder.
- Abortos?
- Nenhum.
- Nenhum?!!
- Não senhor.
- Na sua vida, de mais a mais…
- Nenhum. Nunca quis.
- E os filhos? Vivos ou mortos?
- Todos vivos e sãos.
- Criados lá?!
- Pois.
As letras do assento oscilaram, inseguras no papel. Firme, só ela, desgraçada, mas com a sua folha de mãe corrigida e limpa.
- Muito bem. Suba
O nono rebento nasceu como o de qualquer mulher honrada, e a parturiente teve alta esta manhã.
- Vou mandar-lhe umas coisas – prometeu um colega, rendido a semelhante grandeza. E acrescentou, só para mim: - Quero auxiliá-la. Isto é tudo uma miséria, mas diante de uma pureza assim, é preciso que ao menos a gente só assine vencido.
- Acho bem que a proteja – respondi-lhe, a olhá-lo bem. – Mas se quer de facto ajudá-la, siga-lhe o exemplo, e nem mesmo vencido assine.
Miguel Torga - Diário II, págs. 187/188, 4.ª Edição Revista, Coimbra/1957
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