Chá com Letras Online: Canto-LEITURAS DE IRENE LISBOA XVII



LEITURAS DE IRENE LISBOA XVII
202.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal



FÉRIA NO CAMPO
Algumas vezes me fui sentar debaixo dos ulmeiros à hora da sesta. Deitar não, porque o chão era duro.
Em minha frente estava a Cabeça Gorda, tão elegante, e que tão copiosa crónica daria se eu quisesse em espírito descer a encosta do outro lado e respigar velhas vidas infames. Mas para quê, senhores, para quê? O presente está tão cheio de interesses, pede-nos constantemente uma atenção tão fresca e desenvolta! Para quê desenterrar antigas preocupações?
Sentava-me àquela sombra e pensava o que calhava.
As tardes eram suaves, raramente abafadiças. A vista da terra, se não alegrava, pacificava-me. Descansada, acompanhava com os olhos as cavas intermináveis da empinada lomba da frente. Mal distinguia a cor das camisas dos homens, mas via brilhar as enxadas, primeiro lamentava aquele duro trabalho de tantas horas, depois regozijava-me (o termo excede a ideia) de que houvesse trabalho tão aturado. É que as mulheres falando de um outro patrão dos homens delas, diziam isto: este dá trabalho todo o ano, aquele só o dá quando se vê em apertos…
Por isso levantar a enxada e dar o jeito ao corpo para surribar fundo ou para destorroar sendo preciso e arredar pedras, me parecia já, como de facto era, uma coisa indispensável e de desejar. Uns pensamentos nos alteram e corrigem outros necessariamente, e tudo em mente acaba por receber a sua acomodação.
Vi a Cabeça Gorda, ouvia os moinhos da Maneta do Matias e do Manuel Velho, que nos primeiros dias me entretinham e depois me cansavam quando a sua buzina crescia, e se virava a cabeça para a minha esquerda lobrigada quase sempre gente no lugarejo daquela banda. Era longe, as pessoas não se reconheciam, mas os seus movimentos trás dos burros, a chamar as galinhas, à frente de carros ou no Pilharinho tinham o sabor da terra. Terra de miséria e de má língua, terra brava! Terra da minha curiosidade… Desde que me entendo que lhe conheço o nome à vista. Tão pitoresca de longe e tão desgraçada de perto.
Irene Lisboa, FOLHAS SOLTAS DA SEARA NOVA (1929-1955) – excerto de “Férias no campo”, págs. 284/285, Biblioteca de Autores Portugueses, Junho de 1983

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